«Desenvolveram-se em vários
países movimentos de contestação e “indignação”, nos quais participaram camadas
e sectores variados que, apresentados como espontâneos e informais, se
caracterizam essencialmente pela sua grande heterogeneidade social e política,
por expressões, graus de consciência e organização muito diversos e por
objectivos difusos, parcelares e mesmo contraditórios.» (1) O XIX Congresso do
Partido não podia passar ao lado da realidade dos chamados «movimentos
inorgânicos», no plano internacional e nacional. Se em alguns casos não passam
de movimentações fugazes, outros há em que atingem grande apoio popular e
dimensão de massas. É sobre este fenómeno que este artigo pretende deixar
algumas breves notas.
No
plano internacional
Foi a propósito da chamada
Primavera Árabe e das movimentações de massas no Egipto que, de forma mais
concertada, a comunicação social e o capital começaram a associar os chamados
movimentos inorgânicos e as mobilizações através da internet e das redes sociais
– em particular do facebook, mas também do twitter e dos blogs.
O livro «Indignai-vos!», do
francês Stéphane Hessel, é apresentado como a origem do nome genérico que
internacionalmente se dá a estes movimentos – «os indignados». Hessel,
recentemente falecido, lançou o livro em 2010, em França, e vendeu em todo o
mundo mais de 3,5 milhões de exemplares. Trata-se de uma obra de pouco mais de
50 páginas, em que o autor parte da sua vivência pessoal para elencar o
conjunto de injustiças que o indigna no mundo. A versão portuguesa está editada
desde 2011, com prefácio de Mário Soares.
Referindo-se às
manifestações de 12 de Março de 2011, que ficaram conhecidas como «Geração à
Rasca», o Expresso afirmava num artigo recente que «Portugal foi mesmo pioneiro
na transposição dessa estratégia da utilização do facebook no activismo
político das lutas contra regimes ditatoriais da Primavera Árabe para as novas
contestações às democracias ocidentais, num momento em que se acentuaram as
crises dos sistemas financeiros do capitalismo neoliberal.»(2)
Este movimento ganhou
expressão após as manifestações, protestos e acampadas da «Democracia
Verdadeira Já!», em Espanha, a 15 de Maio de 2011, de que a mais simbólica será
a da praça das Portas do Sol, em Madrid. Este acontecimento gerou solidariedade
por toda a Europa, tendo-se verificado tentativas de réplica em vários países.
Quatro meses mais tarde ocorria a ocupação do Zuccotti Park, em Nova Iorque,
dando origem ao movimento «Ocupar Wall Street». Em Lisboa houve tentativas de
ocupação de praças, sem grande adesão, no Rossio e frente à Assembleia da
República, bem como no Porto e em Coimbra.
São movimentos, acções e
iniciativas diferentes de país para país, em grande medida dinamizados por
jovens, encerrando no entanto contradições semelhantes: o preconceito contra o
movimento operário e a luta de classes, a falta de objectivos claros e
consequentes, a centralidade dada a causas parciais, a insuficiente
caracterização da natureza do capitalismo e a valorização do espontaneismo em
oposição aos movimentos organizados.
Se por um lado revelam o
alargamento do descontentamento popular e do estreitamento da base social de
apoio do capitalismo, por outro têm a marca de um mimetismo ilusório e
inconsequente.
À
escala de massas
A Resolução Política do XIX
Congresso do Partido refere: «na vida política nacional recente têm surgido
movimentos apresentados como ‘inorgânicos’, com expressão e propósitos
diferenciados. Movimentos que, de forma geral, incorporam sectores sinceramente
movidos por sentimentos de indignação e protesto face às consequências nas suas
vidas do desenvolvimento da política de direita. O que não invalida o facto de
a participação em algumas destas iniciativas de novos e diversos sectores e
camadas (de que as acções realizadas a 15 de Setembro de 2012 constituem
exemplo) traduzir em muitos portugueses uma crescente percepção quanto à
identificação dos reais responsáveis da actual situação económica do país
[...]». (3)
A Resolução Política refere
ainda que, no essencial, a estas movimentações correspondem objectivos justos,
ainda que limitados. A denúncia da precariedade no caso das manifestações da
«Geração à Rasca» (4), a situação da Cultura e dos seus profissionais (5), a
recusa do aumento da Taxa Social Única e a exigência da demissão do Governo (6)
são disso exemplos.
Seria um erro olhar para
estas acções de forma estática. Foram diferentes em cada momento e em cada
localidade. Se a convocatória da «Geração à Rasca», em 2011, punha à cabeça o
protesto contra «os políticos, os empregadores e nós mesmos», o apelo do «Que
se Lixe a Troika», que deu origem às manifestações de 2 de Março deste ano,
pretendeu fazer «a confluência de iniciativas com vista ao derrube desde
governo e de todos os governos colaboracionistas com os programas da troika». O
que, convenhamos, é bastante diferente no que diz respeito ao nível da
consciência política.
Seria errado ignorar a
dimensão da participação nas acções ocorridas no nosso país. A vontade de
participação expressa por muita gente, que em torno de aspectos concretos se
mostra disponível para ir à luta, corresponde ao agravamento das consequências
da política de direita, mas também aos apelos que o Partido e o movimento
sindical unitário têm feito no sentido de que é pela luta e pela intervenção
que o povo português construirá uma alternativa à situação que vivemos.
Uma
cobertura mediática inaudita
Sem qualquer pretensão de
nos substituirmos à análise que cada povo e cada organização faça das suas
lutas, a verdade é que em todos os momentos históricos os meios tecnológicos
disponíveis foram usados pelos trabalhadores e pelos povos como meios de
propaganda da luta. A possibilidade de ler e escrever, imprimir folhetos,
publicar um jornal, telefonar, mandar telegramas ou sms, terá, à época, sido
tão moderna como nos nossos dias parece ser criar um evento no facebook para
divulgar uma acção de luta. A evolução tecnológica e do conhecimento humano
aplicada à comunicação abre felizmente cada vez mais possibilidades de
contacto.
Para falarmos só do nosso
país, a verdade é que tanto o Partido como os mais diversos movimentos
organizados (a começar pelo movimento sindical unitário) têm por prática de há
muitos anos recorrer a todos os meios de comunicação ao seu alcance em cada
momento. Não há hoje nenhuma acção de luta da CGTP-IN que não seja divulgada na
internet e nas mais diversas redes sociais, por exemplo.
Como qualquer utilizador
esporádico do facebook comprovará facilmente, também é verdade que não há dia
nenhum que não surja pelo menos um apelo para as mais diversas acções de
protesto inorgânico sobre os mais diversos assuntos. A questão impõe-se: porque
é que uns têm adesões à escala de massas e outros envolvem pouco mais do que os
criadores do evento no facebook – e às vezes nem isso? A resposta é óbvia:
órgãos de comunicação social de massas.
Mesmo sem um estudo
rigoroso, com certeza que não nos enganamos se afirmarmos que a promoção na
televisão, na rádio e nos jornais destas manifestações (12 de Março de 2011, 15
de Setembro e 13 de Outubro de 2012, 2 de Março deste ano) foi avassaladora e
incomparável com a cobertura dada a qualquer outra acção de protesto no nosso
país.
Sendo os meios de
comunicação social pertença dos grandes grupos económicos, a questão seguinte
impõe-se: Que objectivos tem o capital?
Estas movimentações parecem
«consensuais». No plano internacional, gente como George Soros, ou Gorbatchev,
apoiaram publicamente o movimento «Ocupar Wall Street». Em Portugal, o ministro
das Finanças Vítor Gaspar referiu a manifestação de 15 de Setembro do ano
passado como exemplo de que os portugueses são «o melhor povo do mundo».
Ao mesmo tempo, estas
manifestações parecem autorizar todas as interpretações, independentemente do
que os promotores tenham aprovado como convocatória ou declaração final. A
propósito das acções de 15 de Setembro de 2012, por exemplo, foi possível ver o
PS a resumir o descontentamento ao aumento da TSU, o Governo PSD-CDS a gabar-se
de ter «ouvido o povo», o BE a tentar apropriar-se, e vários comentadores da
área da política de direita a dizerem que os manifestantes deram uma lição a
todos os partidos, porque são todos iguais e igualmente responsáveis pela
situação a que chegámos.
A Resolução Política do XIX
Congresso do Partido refere que «é necessário desmascarar a instrumentalização
destes movimentos pela classe dominante que assim tenta esvaziar o
descontentamento e a revolta, combater o movimento popular organizado e,
simultaneamente, contrariar as tendências para descentrar do terreno nacional
em nome de equívocos “internacionalismos”, promover práticas anarquizantes e
desviar para o leito do reformismo reais sentimentos de revolta».(7)
São visíveis, igualmente, os
estímulos à constituição de novos sujeitos políticos capazes de levar por
diante processos de contestação, com mobilizações assentes em «novas» formas,
via redes sociais, e de carácter aparentemente não estruturado. Após as acções
de 12 de Março de 2011, os organizadores iniciais avançaram numa linha visando
a institucionalização do movimento, como a iniciativa legislativa popular
conducente a uma lei contra a precariedade, ou a exigência de uma «auditoria cidadã»
à dívida, que continua a fazer sessões pelo país.
Quando convém, o capital
cria condições, ou introduz elementos – alguns exteriores, outros potenciados
internamente – para «elevar» a contestação, com contornos provocatórios, de
forma a «justificar» a repressão. Isto foi claro na Grécia, em Espanha, ou nos
acontecimentos frente à Assembleia da República no final da greve geral de 14
de Novembro de 2012.
A referência de que estas
manifestações foram «as maiores de sempre», num país «em que os níveis de
participação são baixíssimos» serve naturalmente para desvalorizar a dimensão e
profundidade das enormes acções de massas realizadas nos últimos anos no nosso
país, com destaque para as manifestações da CGTP-IN, bem como para
desconsiderar a luta que não aparece na televisão – as greves, as
concentrações, as acções na empresa ou na localidade.
«O
culto da espontaneidade»
Estas acções são
apresentadas pelos partidos da política de direita, mas também por forças que
se dizem à esquerda, como prova da falência dos partidos (e especialmente do
PCP), dos sindicatos, da luta organizada. Estas são as lutas genuínas,
sinceras, criativas, em que o povo pode e deve participar. As lutas organizadas
são manipuladas, burocráticas, encenadas, acabadas.
Que a direita o queira fazer
crer, percebe-se muito bem. Mas que forças «à esquerda» o façam com ainda mais
entusiasmo é um fenómeno que o camarada Álvaro Cunhal expôs na sua obra O
Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista: «o culto da espontaneidade
(…) tem, nos dias de hoje, um objectivo prático, visando, através, da
contestação do Partido e de outras organizações independentes da classe
operária ou do movimento democrático, através de uma demagogia “basista”, levar
à aceitação (no movimento operário e no movimento democrático) da direcção da
pequena burguesia radical de fachada socialista.»(8)
Vão nesta linha as
tentativas de realização de «Assembleias Populares» intermináveis após as
acções, que marcam acções em cima de acções, ao ponto de uma destas assembleias,
com poucas dezenas de participantes, ter decidido que a CGTP-IN devia marcar
uma greve geral… Após as manifestações de 12 de Março de 2011 surgiram vários
pequenos grupos, alguns não são mais do que eventos criados no facebook, mas
outros pretendem assumir-se como dirigentes da luta – Movimento 12 de Março,
Plataforma 15 de Outubro, Assembleias Populares de Indignados, etc., continuam
a procurar impor-se.
★★★
O aprofundamento da crise
estrutural do capitalismo, o agravamento da ofensiva e as consequências do
Pacto de Agressão no nosso país, com o aumento da exploração e a condenação ao
empobrecimento de milhões de portugueses, trazem à luta novas camadas antimonopolistas.
Nestes movimentos
«inorgânicos» está presente a expressão política desta disponibilidade. Mas
também está a pretensão de disputar à classe operária e às estruturas unitárias
do movimento popular de classe o papel de direcção da luta, tentando evitar que
estas movimentações contribuam para uma real ruptura com a política de direita,
encaminhando-as para um papel de conciliação com o grande capital.
Tal como afirmámos no
Congresso: «a participação destes sectores deve por isso ser valorizada, trabalhando
para uma maior confluência com a luta mais geral do povo português» (9). Pelo
exemplo e pelo convencimento, devemos procurar inserir tais movimentações na
grande corrente dos que lutam por uma alternativa patriótica e de esquerda. «Só
as formas de luta organizada e por objectivos concretos permitem que o
descontentamento não se perca em acções inconsequentes ou não seja absorvido
pelo sistema.»(10)
Notas:
(1) Resolução Política do
XIX Congresso do PCP, p. 15.
(2) Alexandre Costa, «As
novas marés da indignação», Expresso, 23-03-2013.
(3) Resolução Política do
XIX Congresso do PCP, p. 74.
(4) 12 de Março de 2011.
(5) 13 de Outubro de 2012.
(6) «Que se Lixe a Troika –
Queremos as Nossas Vidas de Volta», 15 de Setembro de 2012 e 2 de Março de 2013.
(7) Resolução Política do
XIX Congresso do PCP, p. 16.
(8) Álvaro Cunhal,
Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, Edições «Avante!», Lisboa,
1974, pp. 126-127.
(9) Resolução Política do
XIX Congresso do PCP, p. 74.
(10) Idem, p. 16.
Linda análise do culto à espontaneidade! É exatamente o que ocorre com movimento apartidários que começam com eventos no facebook. Podem até juntar 5 mil pessoas, mas ainda não passa de berros ao vento.
ResponderEliminarCheguei a este artigo d'«O Militante» através de comentários de oportunistas do MAS, que diziam que era contra os movimentos inorgânico.
ResponderEliminarÉ, isso sim, uma crítica certeira às falhas, inconsistências e inconsequências destes movimentos, mas ao mesmo tempo o reconhecimento da justiça das motivações e de várias reivindicações de muitos dos seus participantes.
Uns (BE, MAS, MRPP) preferem cavalgar estes movimentos e aproveitam para desprezar a luta organizadas do movimento sindical e da CGTP. O PCP tem tido a postura correcta, e mais cedo ou mais tarde muitos milhares reconhecerão nele a força que os representa e que luta pelos seus direitos.