O conhecimento
das condições em que se processaram as relações da República de
1910 e seus dirigentes com a Rússia revolucionária, antes e depois
da Revolução Socialista de Outubro, bem como das posições da
comunicação social republicana de referência à época,
afigura-se-nos de grande importância para a compreensão da natureza
de classe do regime implantado em 5 de Outubro de 1910 e de como
Portugal continuava a ser um protectorado inglês, apesar da retórica
republicana sobre a soberania nacional.
As causas que determinaram as posições face à revolução soviética na Rússia têm uma longa história e continuam a estar presentes de forma marcante na vida política nacional dos nossos dias, razão talvez porque tenha caído um silêncio de chumbo sobre estas matérias na panóplia de escritos e iniciativas para assinalar o centenário da República.
Mais do que relembrar orientações políticas do passado, esta questão tem a importância de mostrar que, com excepção de um período relativamente curto em que, em consequência do desenvolvimento da Revolução de Abril, Portugal assumiu inequivocamente posições anti-imperialistas e de solidariedade com a luta dos povos – princípios que vieram a ter consagração constitucional –, as políticas das classes dominantes portuguesas, quer as executadas por partidos monárquicos, republicanos, fascistas, quer pelo Partido Socialista dito laico e republicano, ou por partidos de direita no Portugal de Abril, traduzem-se num longo historial de abdicação dos interesses nacionais, de subserviência face ao imperialismo e são responsáveis pelo envolvimento de Portugal em sujas operações e agressões contra a independência e a soberania dos povos e a sua luta libertadora e emancipadora.
O envolvimento de Portugal na luta contra a Revolução francesa, a Comuna de Paris, a Revolução de Outubro, a Espanha Republicana; a participação em diferentes períodos nas operações da NATO; a submissão aos ditames da União Europeia; a participação nas agressões à Jugoslávia, ao Iraque e ao Afeganistão; o sistemático apoio às políticas agressivas do imperialismo americano – mostram-nos que as classes dominantes fazem da submissão ao imperialismo uma espécie de seguro de garantia para a sua sobrevivência. Mostram-nos igualmente que na luta contra os trabalhadores e os povos «a burguesia actua como classe social única» e que os seus interesses de classe exploradora se sobrepõem aos interesses da defesa da independência e soberania nacionais, princípios que estão na origem do corte de relações do nosso país com a Rússia Soviética no início de 1918, no apoio às agressões imperialistas contra o Estado socialista e no envolvimento do Portugal republicano na «sagrada cruzada» internacional contra a «hidra» bolchevique.
As relações diplomáticas e comerciais de Portugal com o império russo estruturaram-se ao longo do século XVIII. Remonta a 1778 a nomeação do primeiro embaixador português na Rússia e a 1787 a assinatura de um tratado de comércio – Tratado de Amizade, Navegação e Comércio. (1)
As relações comerciais chegaram a atingir importância significativa e, em 1799, Portugal estabeleceu mesmo um Tratado de Aliança Defensiva com a Rússia, ainda que tivesse ficado a aguardar parecer da Grã-Bretanha.
Quando estiveram em causa disputas territoriais, a Rússia apoiou Portugal. Fê-lo na Conferência de Berlim (1885); na Conferência de Bruxelas (1890); na Conferência de Haia (1907). Por ocasião do ultimato inglês (1890), analisando a falta de apoio das diversas potências a Portugal, o ministro de Portugal em S. Petersburgo comentava ser a Rússia a única que abertamente apoiava Portugal (2).
À data da implantação da República, a Legação portuguesa em S. Petersburgo era uma das mais importantes. E não deixa de reflectir a importância estratégica que a Rússia atribuía a Portugal para as suas incursões no Mediterrâneo o facto deste país, um Estado monárquico, ter sido dos primeiros a reconhecer a República portuguesa.
Mas a Rússia era uma monarquia autocrática, «prisão de povos», «chapéu de chuva» da reacção europeia, que se havia tornado num dos principais centros de contradições inter-imperialistas e para onde se tinha deslocado o centro do movimento revolucionário. Por outro lado, Lénine, ao analisar a luta dos grandes Estados imperialistas pela divisão do mundo, dizia que Portugal era um daqueles países que do ponto de vista formal e político gozam de independência, mas que na realidade se encontram envolvidos nas malhas da dependência financeira e diplomática (3) e que, a esta luz, era um dos Estados que «há mais de duzentos anos (…) está sob o protectorado de Inglaterra» (4).
Esta realidade, agravada com o ultimato inglês de 1890, vai determinar que, até à Revolução de 5 de Outubro, o Partido Republicano, desfraldando a bandeira da defesa da soberania e da independência nacionais, ganhe grande adesão popular, que a luta contra a monarquia e o domínio inglês se tornem indissociáveis, a par da denúncia da autocracia russa e da solidariedade para com os sectores revolucionários russos, luta em que se inspirava e na qual depositava grandes esperanças para o triunfo da República.
António José de Almeida, preso na cadeia de Coimbra por ter escrito «Bragança, o último», desfere, em novo artigo, um violento ataque ao domínio inglês sobre Portugal, acusando a Inglaterra de tratar os portugueses pior do que os negros das suas possessões, e exalta o Niilismo russo, uma força que, como dizia, aumenta prodigiosamente apesar da repressão. E talvez mais a pensar no rei D. Carlos do que no czar, acrescenta que «o Niilismo há-de vencer, estilhando, por ventura com uma bomba de dinamite, o corpo desse homem cuja memória não possuirá um afecto, cujo cadáver será amortalhado em ódio» (5).
A defesa e a divulgação da acção dos niilistas russos, a recomendação para que os portugueses se inspirassem nessa luta, a divulgação de actos bombistas e a elevação dos seus promotores à categoria de heróis supremos vão ser uma constante em escritos de dirigentes e na imprensa republicana. É o caso do destaque dado ao assassinato (Fev./1905) do governador de Moscovo, Gão-Duque Serguei Alexandrovich, «condenado à morte por uma das numerosas sociedades secretas que procuram conseguir a liberdade da Rússia» (6). É assim a propósito de Maria Spiridova, implicada no atentado contra o governador de Tambov e sobre o qual Maria Veleda escreveu: «Ninguém se atreverá a sustentar que a mulher é cobarde lançando os olhos para esse enorme campo de combate que é a Rússia, onde tantas mulheres têm derramado o seu sangue generoso, em prol de um ideal de libertação» (7). É assim com a acção de Sofia Perowskaia, implicada no atentado contra o czar Alexandre II, apresentada como exemplo do «terrorismo vigoroso, a dinamite, a morte implacável aos espiões, aos déspotas» (8).
A revolução russa de 1905, confirmando as previsões de Marx e Engels de que a verificar-se o desenvolvimento revolucionário na Rússia uma revolução aí teria enorme ressonância e seria «um ponto de viragem na história universal», veio dar grande impulso à luta revolucionária na Europa e naturalmente também em Portugal.
Vários órgãos de comunicação social republicanos, de forma regular e circunstanciada vão dando notícias sobre «A revolução na Rússia», deixando transparecer nítida simpatia pela revolução, esperanças no seu triunfo e de que o seu exemplo frutifique em Portugal.
A par das notícias sobre as revoltas no Couraçado Potenkine e no Couraçado Almirante «Seniavine», da luta armada do povo, da adesão de diferentes camadas à revolução (camponeses, estudantes, advogados, médicos), é igualmente dado grande relevo à luta da classe operária, concluindo-se que «Uma das grandes forças da revolução consiste sem dúvida no abandono das oficinas» (9).
O movimento internacional em defesa da vida de Máximo Gorki atingiu significativa expressão em Portugal, tendo O Século verberado o crime que se preparava e feito um apelo à participação na campanha em defesa da vida de Gorki. (10)
A 1 de Fevereiro de 1905 realiza-se na Associação dos Lojistas de Lisboa uma reunião com o mesmo objectivo, de homens de letras, jornalistas e artistas, com a participação de destacados dirigentes do Partido Republicano. E uma outra no Ateneu Comercial de Lisboa, amplamente participada de estudantes, contra a repressão na Rússia, tendo sido aprovada uma moção que fazia votos «para que do movimento revolucionário na Rússia raie para aquele povo um nova era de justiça e de liberdade» (11), bem como na Associação dos Advogados e na Associação dos Caixeiros.
No Porto, a iniciativa partiu da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e em Coimbra realizou-se um comício de solidariedade com o povo russo. (12)
As informações enviadas pelo embaixador da Rússia em Lisboa ao seu governo sobre a influência do movimento revolucionário russo em Portugal são de grande importância para a avaliação dos efeitos dessa influência. «Todas as notícias – dizia – sobre o que acontece na Rússia, divulgadas em Portugal pelos revolucionários russos que se acham no exterior, são imediatamente transmitidas pelo telégrafo e publicadas pelos jornais portugueses com grande destaque» (13). E em uma outra informação, o embaixador reconhecia que «os eventos revolucionários da Rússia constituem uma das causas da intensificação da campanha anti-monárquica em Portugal» (14).
Mas o embaixador não se dirigia só ao seu governo, dirigia-se igualmente ao governo português, chamando-lhe a atenção para a campanha anti-russa, diga-se anti-czarista, que se fazia sistematicamente em Portugal.
Reciprocamente, a luta pela República em Portugal era acompanhada com bastante interesse na Rússia e em particular por Lénine, que escreveu vários textos sobre Portugal e que, por altura do regicídio, quando se fazia sentir a vozearia da reacção internacional contra os revolucionários portugueses, se colocou sem ambiguidades ao lado destes.
Mas chegados ao poder, os republicanos mudam completamente de agulha, tendo o seu programa sido metido na gaveta.
Do apelo (aos governos monárquicos) para se recusar, no que toca à Inglaterra, «pactos de amizade com quem poucos escrúpulos tem em nos esmagar … e nos explorar», da classificação da Inglaterra como «uma nação inimiga», de considerarem depois do ultimato, «ofensivo do direito, do decoro e dos interesses da nação portuguesa, tratar directamente com a Grã-Bretanha» (15), ou ainda depois do Directório do PRP ter classificado a Inglaterra de nova Cartago e de que todos os tratados com a Inglaterra tinham «sido feitos exclusivamente em benefício da segurança dinástica» (16), a aliança com a Grã-Bretanha passou a ser considerada como uma das condições da nossa existência nacional e uma sólida garantia da integridade do nosso território continental e colonial.
Pelos vistos, os dirigentes republicanos andavam redondamente enganados, certamente por estarem mal informados, pois o Governo da República sabe «que a lealdade nunca desmentida da Nação inglesa» e que os tratados entre os dois países «são segura garantia … de que a Inglaterra não consentirá que a integridade material e moral do seu fiel aliado sofra qualquer prejuízo» (17).
Como explicar tamanha reviravolta nas posições dos governantes republicanos? É que o poder republicano, tendo decidido prosseguir a política monárquica de rapina em relação às colónias, precisava para isso de contar com o apoio da Inglaterra, mesmos sabendo tratar-se de um aliado que sempre consideraram pouco fiável e que havia incluído as colónias portuguesas no «catálogo» dos negócios para a partilha do mundo.
Com o envolvimento de Portugal na I Guerra Mundial, Portugal republicano assume claramente a sua condição de protectorado inglês, amarra os seus destinos ao carro de guerra imperialista, ambiciona participar na nova partilha do mundo e integra-se empenhadamente na «sagrada aliança» contra a Rússia Soviética e o movimento revolucionário em geral, política que veio a custar muito caro ao povo português e mesmo a largos sectores republicanos.
Quando já se perspectivava o início da guerra, o governo de Bernardino Machado, a 1/8/1914, seguindo a via da subserviência face à Grã-Bretanha, encarrega o representante português em Londres (Teixeira Gomes) de obter junto do Foreign Office quaisquer declarações que pudessem «guiar com segurança» a posição a tomar por Portugal. Um dia depois, e dado que Portugal não podia deixar de ter posição, nova insistência junto de Teixeira Gomes para obter resposta do Foreign Office, acrescentando-se que Portugal desejava ter uma atitude de neutralidade, mas que não podia fazê-lo sem se saber se a Inglaterra «não desejará de nós qualquer manifestação diferente».
Dois anos depois coube ao governo de Afonso Costa cometer um dos mais escandalosos actos próprios dos protectorados ao utilizar o argumentário redigido por Inglaterra na resposta a dar ao governo alemão, fundamentando as razões para o apressamento dos navios alemães em portos portugueses. (18)
Já envolvido na guerra, ao eclodir a Revolução de Fevereiro e depois a de Outubro na Rússia, Portugal que tinha abdicado de ter uma política externa própria, vai continuar na via da subserviência face à Inglaterra e outras potências ocidentais, e tal como fizera a monarquia no período da Comuna de Paris e no combate aos membros da Internacional, alia-se à reacção internacional e seus serviços policiais, contra a Rússia Soviética e à sua influência no mundo.
Logo após a revolução democrática-burguesa (Revolução de Fevereiro), o MNE (20/3/1917) dava indicação ao embaixador português na Rússia para proceder de acordo com os Aliados. E quando em Setembro é derrubada a monarquia e instaurada a República na Rússia, são transmitidas instruções ao embaixador português na Rússia para «proceder inteiramente em conformidade com o representante da Inglaterra». Posicionamento que se repetiu e, de forma ainda mais enfática, quando teve lugar a Revolução Socialista de Outubro, levando Portugal republicano, que não havia chegado a reconhecer a instauração da República democrático-burguesa na Rússia, a cortar relações, no começo de 1918, com o Estado soviético.
O anti-comunismo torna-se na ideologia das classes dominantes contra o movimento operário. A imprensa reaccionária e republicana, bem como diplomatas portugueses instalados em algumas capitais europeias, numa sintonia perfeita, lançam-se numa desenfreada campanha anti-comunista, classificando os bolcheviques de criminosos, de bandidos, gente capaz das coisas mais horrorosas. Lénine é apresentado como um mentecapto e agente alemão.
A situação na Rússia é descrita como o inferno na terra, e o comunismo como uma terrível praga que ameaçava o mundo, exigindo-se mão dura para o combater. A luta social e os sindicatos equiparados a inimigos internos, agindo às ordens de Moscovo. Segundo o embaixador português na Rússia, grande parte dos dinheiros obtidos com a nacionalização dos bancos tinha sido para «a propaganda anarquista em todo o mundo».
A repressão ao bolchevismo passa a ser uma preocupação dos governos da República.
Para evitar a «desordem» em que teria caído a Rússia, o governo da República, seguindo o exemplo de outros países, vai «reprimir com a maior energia qualquer tentativa ou movimento revolucionário ou sovietista» (19).
Na sequência da greve geral de Novembro de 1918, seguem-se as proclamações: «Todo o país repele com energia a desordem bolchevique» (20).
Portugal integra o Bureau Inter-Aliado, sediado em Paris, o qual procede à sistematização e troca de informações sobre elementos bolcheviques, ou tão só suspeitos de o serem, em vários países, bem como à troca de informações e experiências do que cada Estado faz para combater o bolchevismo.
Com o desenvolvimento do movimento operário, do apoio à Revolução soviética, do aparecimento de A Bandeira Vermelha, da formação da Federação Maximalista e da criação do PCP, vai-se estruturando um aparelho policial especializado na perseguição aos elementos «indesejáveis», os bolcheviques. (21)
A Bandeira Vermelha é apreendida várias vezes. Dezenas e dezenas de simples distribuidores do jornal, membros da Federação Maximalista, membros do Partido, ou tão só por suspeita de serem bolcheviques, são presos. A polícia vigia iniciativas do Partido. E tudo isto, a par da maior complacência para com a ameaça fascista que era já uma realidade.
Os golpistas do falhado golpe de Abril de 1925 (ensaio do que viria a ser o golpe do 28 de Maio) são todos absolvidos, mas a 5 de Maio de 1926, às vésperas do golpe fascista, são presos vários membros do PCP, entre eles o destacado militante Roque Júnior, acusados de «terem elaborado o plano X para a tomada do poder».
Contra o jovem Estado soviético congregaram-se forças poderosas. Inimigas de ontem, entenderam-se para tentar esmagar um Estado que, pela força do exemplo, ameaçava os interesses da burguesia à escala mundial.
Já antes da Revolução de Outubro, quando crescia a influência do bolchevismo e se revelava incerto o destino do Governo Provisório, o embaixador americano propunha ao seu governo o envio de tropas para «auxiliar» o povo russo. E como o respeito pela soberania dos povos não é coisa que tolhesse os imperialistas, a 24 de Outubro de 1917 (calendário antigo) perguntava ao secretário de Estado o que pensava do envio de duas ou mais divisões do exército americano se conseguisse «o consentimento do governo russo para isso, ou até mesmo conseguir obrigá-lo a fazer esse pedido» (22).
A resposta não deve ter chegado a tempo. No dia seguinte confirmam-se as preocupações do embaixador americano e de outros embaixadores, incluindo o português, os bolcheviques tomaram o poder. A onda revolucionária alastra pelo mundo fora e com isso o pânico nos países imperialistas.
O ambiente que se vivia no campo imperialista pode ser avaliado pelas anotações do coronel House, conselheiro do presidente dos Estados Unidos, Wilson: «O bolchevismo está a ganhar terreno por toda a parte (…). Estamos sentados em cima de um paiol de pólvora a descoberto e qualquer dia uma faísca pode fazê-lo explodir» (23). Da mesma visão partilhava o presidente francês, ao defender a necessidade de se criar «Um cordão sanitário em relação ao comunismo».
Os insucessos das operações dos grupos contra-revolucionários, armados e orientados pelas potências imperialistas, o fracasso dos processos separatistas fomentados pela Entente, colocaram no campo das acções práticas a invasão da Rússia Soviética por uma coligação imperialista liderada pelos EUA, emergido à condição de principal potência imperialista em consequência da guerra, agressão a que o governo português vai dar o seu incondicional apoio.
As citações que se seguem são porventura longas, mas elas mostram que a natureza do imperialismo não muda, que o argumentário e pretexto de Bush para atacar o Iraque há muito fazem parte da política americana e que o serventuário Durão Barroso, para nossa desgraça, faz parte de uma velha linhagem de serventuários.
A 1 de Outubro de 1918, o responsável da delegação dos EUA, T. H. Brich, entrega ao MNE português um ofício do seu governo comunicando que, tendo o governo dos EUA recebido «uma informação de fonte segura revelando que os cidadãos russos pacíficos de Moscovo, Petrogrado e outras cidades estão sofrendo uma campanha de intenso terrorismo e são sujeitos a execuções em massa», e correspondendo ao «ardente desejo do povo dos EUA de auxiliar o povo russo», e «unicamente no interesse do próprio povo russo», «o governo americano entende que não pode ficar silencioso» e que, perante tantos crimes, «todas as nações civilizadas devem registar o seu horror a tal barbaridade».
E certo de que existiam armas de destruição massiva (os «crimes bolcheviques»), o ministro americano diz ter sido encarregado de perguntar ao governo português da sua disponibilidade para «adoptar algum imediato procedimento», «para fazer sentir aos autores dos crimes a aversão com que a civilização encara os seus presentes actos de atrocidade» (24).
O MNE de então, Dr. Egas Moniz, não se mostrou menos subserviente do que Durão Barroso no caso do Iraque. Tomando como certa a informação fornecida pelos EUA quanto às «abomináveis atrocidades bolcheviques», Egas Moniz considera que a sugestão de uma intervenção contra a Rússia Soviética «redobra de significação e alcance com o partir da grande democracia americana», pelo que essa intervenção «encontra no povo português o acolhimento de que é merecedora pela sua nobre intenção». Assim, «o Governo Português acompanhará com a maior simpatia no seguimento que o Governo dos Estados Unidos da América entender imprimir-lhe» (25).
O governo dos EUA dirigiu-se naturalmente a vários outros países no mesmo sentido. A seguir entrou em cena a comunicação social dominante no sentido de preparar a opinião pública para aceitar como natural os crimes «civilizacionais» do imperialismo.
A 11 de Novembro, o Acordo de Armistício estabelecido entre as potências imperialistas vencedoras e a Alemanha, acordo cujos princípios haviam sido definidos pelos EUA, estipulava, no seu art.º XVI, que os alemães deviam evacuar os territórios do Leste Europeu, que o Acordo de Brest-Litovski ficava sem efeito e que os aliados teriam livre acesso aos territórios evacuados, afim de poderem reabastecer as populações e manter a ordem.
A imprensa dominante encarrega-se de explicar o verdadeiro significado deste palavreado. O Século publicava (13/XI/1918) um telegrama de Londres, dizendo que «A opinião pública acolheu favoravelmente a proposta do governo americano aos governos aliados para intervirem na Rússia com o fim exclusivo de restabelecer a ordem contra os “bolcheviques” e “maximalistas”» e que os aliados «intervirão onde a desordem social tomar o aspecto grave do sovietismo».
Os títulos e as notícias de que a Entente iria esmagar a «hidra» bolchevique, vão-se multiplicando, mas os imperialistas e seus propagandistas enganaram-se retundamente. O povo russo, os operários e camponeses deram provas de grande determinação na defesa do primeiro Estado operário-camponês da história, obrigando os poderosos invasores a regressar a casa.
Alguns Estados acharam por bem reconhecer a nova realidade e começar a estabelecer relações económicas com a Rússia Soviética, o que não aconteceu com a República portuguesa. Como muitas vezes acontece, os lacaios revelam-se piores do que os seus senhores.
Em Maio de 1924, quando o Estado soviético já tinha sido reconhecido por vários Estados, incluindo monarquias europeias, o deputado João Camoesas interpela na Câmara dos Deputados o MNE, Domingos Pereira, sobre o porquê da República portuguesa ainda não ter reconhecido a República Federativa dos Sovietes da Rússia, tanto mais que esse reconhecimento afigurava-se-lhe «de um acto inteiramente necessário ao país, visto que desse reconhecimento poderia derivar o restabelecimento de relações de carácter comercial, do mais alto interesse para nós» (26). O deputado chamou ainda a atenção de que «não há razão para não criar um desafogo aos produtos portugueses», alguns dos quais atravessando bastantes dificuldades, como era o caso da cortiça, essa importante riqueza nacional e de que a Rússia até era importadora. Além disso, acrescentava o deputado, Portugal tinha uma balança comercial deficitária.
A resposta do ministro Domingos Pereira é esclarecedora quanto à política externa da República. «O Governo português, na hora própria cumprirá o seu dever reconhecendo a existência da República da Rússia. Mas será apenas na hora própria». E quanto aos interesses económicos do país, não lhe parecia que «sofram muito com a conservação da situação actual» (27). (itálicos meus) A «hora própria» estava nas mãos da Inglaterra decidir, só que nessa altura já delegações da Rússia e da Inglaterra se encontravam em Londres para regularizar as relações entre os dois países, coisa que nunca os governos republicanos fizeram e Salazar, obviamente, também não. Foi preciso esperar pelo 25 de Abril para que Portugal reconhecesse a União Soviética.
Notas
(1) Rómulo de Carvalho, «Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII», edições Sá da Costa, 1979, p. 106.
- Catálogo Exposição «Relações entre Portugal e a Rússia. Séculos XVIII a XX», edições Colibri, 1999, p. 123.
- Lénine, Obras Escolhidas em 3 volumes, I Vol., Edições «Avante!», Lisboa, 1977, p. 639.
- Idem.
- A. José de Almeida, «Palavras de um Intransigente», in «Portugal em crise», edições Fronteira do Caos», 2006, p. 117.
- «Illustração Portuguesa», n.º 69, de 27/2/1905.
- Maria Veleda, «Vanguarda», de 16/9/1909.
- Semanário «A Economia», Ano II, n.º 82, de 14/8/1910.
- «Illustração Portuguesa, n.º 68, de 20/2/1905.
- O Século, de 1/2/1905.
- O Século, de 2/2/1905.
- Idem.
- Nikolai Emifov, «Revolução de 1910», in Revista Internacional.
- Idem.
- Manuel Arriaga, «Intervenção na Câmara dos Deputados», in «Portugal em crise», edições Fronteira do Caos, p. 129.
- Joel Serrão, «Liberalismo, Socialismo, Republicanismo», edições Livros Horizonte, 1979, p. 260.
- «Documentos apresentados ao Congresso da República em 1920 pelo MNE, Portugal no conflito europeu, 1.ª parte, Negociações até à declaração de guerra», edições Imprensa Nacional – 1920, p. 199.
- Idem. Ver Documentos, n.º 1 e n.º 2, p. 3; n.º 331, p. 233; e n.º 349, p. 246.
- O Primeiro de Janeiro, de 19/11/1918.
- «A Situação, Diário Republicano da Manhã», de 21/11/1918.
- Sobre a repressão aos bolcheviques, ver Silvestre Lacerda, «A República e o temor ao bolchevismo», in O Militante, N.º 305.
- «História da Grande Revolução Socialista de Outubro», edições Progresso, 1977, p. 174.
- Rudolf L. Tonés, «Bela Kun and Hungarian Soviet Republic, N. Yorque, 1967, p. 143, in «A Europa desde 1870», Jonas Jole, edições D. Quixote, p. 368.
- Joaquim Palminha, «Jaime Batalha Reis na Rússia dos Sovietes ou Dez Dias que Abalaram um Diplomata Português, edições Afrontamento, Porto, 1984, p. 227.
- Idem, p. 228.
- Câmara dos Deputados, Sessão n.º 90, de 27/5/1924, p. 5.
- Idem, p. 7.
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