segunda-feira, 29 de abril de 2013

Artigos de Opinião | Álvaro Cunhal - A Questão do Estado: Questão Central de cada Revolução




A 30 quilómetros a Noroeste de Leningrado, Razliv é hoje um lugar histórico. Aí, num sítio ermo, se poder ver a reconstituição da cabana onde Lénine viveu clandestinamente em Agosto de 1917. Aí se pode ver também o cepo de uma árvore, que Lénine utilizava como mesa para escrever.
O Verão de 1917 foi um momento de viragem decisiva na revolução russa. Terminara a dualidade de poderes, situação original criada pela revolução, em que, ao lado do governo provisório, governo da burguesia, se formara um outro governo «indubitavelmente existente de facto e em desenvolvimento: os sovietes de deputados e operários e soldados.» Os mencheviques e socialistas-revolucionários, impedindo que todo o poder fosse entregue aos sovietes e entrando num «governo de coligação», entregaram de facto todo o poder à burguesia. A contra-revolução passou à ofensiva. Novas tarefas se colocaram ao proletariado e ao seu partido, o partido dos bolcheviques. Como descreveu Lenine, se até Julho «era ainda possível o desenvolvimento pacífico em diante da revolução russa», a partir de então a questão punha-se em novos termos «ou a vitória completa da contra-revolução, ou uma nova revolução».
Nas vésperas da «nova revolução», que problema considerava Lénine necessário abordar sem perda de tempo e o levava a escrever febrilmente no cepo da árvore em Razliv? Esse problema era o problema do Estado e a obra que então Lénine escrevia viria a constituir uma obra fundamental da teoria da revolução: O Estado e a Revolução. Já nas «Teses de Abril», Lénine caracterizava a situação como a «transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia», para a segunda etapa, que devia dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato. De Abril a Julho de 1917, em numerosos artigos e discursos, Lénine insiste na importância do problema do Estado. É porém em O Estado e a Revolução que, não só expõe duma forma sistematizada a teoria de Marx e a defende dos seus detractores, como a aprofunda e enriquece com a sua investigação teórica criadora assente nas experiências do movimento revolucionário. Nas vésperas da revolução socialista, a ideia fundamental que Lénine julga necessário demonstrar exaustivamente e defender com paixão é que, conquistando o poder, o proletariado não se pode limitar a tomar conta do aparelho do Estado burguês, mas tem de destruí-lo e substituí-lo por um novo Estado.
1.
A teoria marxista da luta de classes permite explicar a origem e a natureza do Estado e os seus diversos tipos e formas. Marx descobriu e demonstrou que o Estado é um poder que nasce da sociedade numa fase determinada do seu desenvolvimento, como resultado da divisão em classes e do antagonismo irreconciliável das classes, como necessidade do recurso à coacção por uma minoria exploradora para manter a exploração da maioria. O Estado é uma «organização especial do poder», «um poder especial de repressão», «a organização da violência», um aparelho militar e burocrático constituído especialmente pelas forças armadas, pela polícia, pelos tribunais, pelos órgãos legislativos e executivos, pelo funcionalismo. Aparentemente acima da sociedade e das classes, o Estado é na realidade um instrumento de dominação e opressão de uma classe sobre outras classes.
A correcta compreensão da natureza do Estado é essencial para toda a acção revolucionária do proletariado, particularmente quando se coloca na ordem do dia a conquista do poder. Marx descobriu que a luta de classes, que se trava na sociedade capitalista, conduz necessariamente à revolução da classe operária, à conquista do poder político pelo proletariado, a um novo Estado definido no Manifesto Comunista como «do proletariado organizado como classe dominante».Esta é a conclusão fundamental da teoria marxista da luta de classes. Não podem pretender ser marxistas aqueles que a rejeitam. Falando da sua teoria da luta de classes, Marx lembrava que não lhe cabia a ele o mérito, nem de ter descoberto a existência das classes, nem de ter descoberto a luta de classes. «O que de novo eu fiz, foi: 1. demonstrar que a existência das classes está apenas ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção; 2. que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3. que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes.»
O papel do proletariado na revolução socialista decorre das suas próprias características como classe na sociedade capitalista. «De todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia» – proclamava o Manifesto Comunista – «só o proletariado é uma classe realmente revolucionária». «Os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar.» Defendendo e desenvolvendo as ideias de Marx, Lénine insistiu em que só o proletariado, como «única classe revolucionária até ao fim», pode ser «o chefe de todas as massas trabalhadoras e exploradas que a burguesia explora, oprime e esmaga muitas vezes não menos mais fortemente que os proletários, mas que são incapazes de uma luta independente pela sua emancipação.» Por isso, o poder da burguesia só pode ser abatido «pela transformação do proletariado em classe dominante capaz de reprimir a resistência, inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime de economia todas as massas trabalhadoras e exploradas».
O proletariado transformado em «classe dominante» como escreveu Lénine, o proletariado «organizado como classe dominante» como definiu o Manifesto, é precisamente a ditadura do proletariado, o novo Estado proletário. «O proletariado necessita do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a imensa massa da população, o campesinato, a pequena burguesia, os semi-proletários, na obra da organização da economia socialista».Mas como organizar o poder do Estado? A conquista do poder significará a conquista do aparelho do Estado? A esta questão Marx deu uma primeira e clara resposta, que depois Lénine desenvolveu.
Estudando atentamente a experiência revolucionária, Marx sublinhava em 1852 que até então as revoluções políticas não tinham feito mais do que aperfeiçoar a máquina do Estado pois «os partidos que lutavam alternadamente pela dominação, consideravam a tomada de posse deste imenso edifício do Estado como a presa principal do vencedor». A experiência da grande revolução proletária do século XIX, a Comuna de Paris de 1871, permitiu a Marx avançar e precisar a sua doutrina. Essa experiência comprovou que, ao contrário do sucedido nas revoluções burguesas, «a classe operária [ao conquistar o poder] não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objectivos». Destruir a máquina do Estado, concluiu Marx, «é a condição prévia de toda a verdadeira revolução popular no continente.»É nessa conclusão fundamental que Lénine insiste e é sobre ela que escreve no cepo da árvore em Razliv, no Verão de 1917, no momento em que ao proletariado russo se colocava a tarefa de realizar a sua revolução. A libertação da classe oprimida (escreve Lénine) é impossível «s e m a d e s t r u i ç ã o» do aparelho do poder de Estado que foi criado pela classe dominante» e a sua substituição «”por uma força especial para a repressão” da burguesia pelo proletariado».
Lénine alertava contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da possibilidade de realizar a revolução socialista, se o proletariado e as classes dominantes se limitassem tomar conta do aparelho do Estado, cuidando poder utilizá-lo contra a burguesia. Em conformidade com tal conclusão, indicava ao proletariado russo e ao seu partido uma tarefa capital para a conquista do poder pelos trabalhadores: a destruição do Estado burguês e a construção dum novo Estado, dum Estado dos operários e camponeses que, sob a direcção da classe operária, quebrasse a resistência decerto encarniçada da burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo homem, pusesse termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade socialista. Tal a essência da ditadura do proletariado.
2.
Quando se fala em teoria marxista-leninista do Estado, deve ter-se sempre presente o significado da palavra «ditadura», empregada tanto em relação aos estados capitalistas, – à «ditadura da burguesia», como em relação aos estados socialistas – à «ditadura do proletariado». A clara explicação desse significado é essencial para a compreensão da teoria da revolução e para a determinação da posição das várias classes e forças políticas em relação ao problema da democracia.
Os ideólogos burgueses, incluindo liberais e socialistas, baralham os dados do problema e procuram mostrar que os comunistas, defendendo a ditadura do proletariado, se opõem à democracia, e que os burgueses liberais e os socialistas é em nome da democracia que se opõem à ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado, como «ditadura», seria um regime de opressão, enquanto a democracia burguesa, como «democracia», seria um regime de liberdade.
A verdade é que a palavra «ditadura», na teoria marxista-leninista do Estado, não significa uma forma particular de dominação de uma ou várias classes por outra ou outras classes, mas o próprio facto dessa dominação. Segundo a teoria leninista, o Estado numa sociedade dividida em classes antagónicas é sempre uma ditadura. A expressão «ditadura» sublinha que o Estado não está acima das classes, não é um instrumento de conciliação das classes nem um árbitro entre elas, antes é a «organização da violência», é um «poder especial de repressão», é um organismo de dominação de umas classes sobre outras. Em resumo: numa sociedade dividida em classes antagónicas, Estado é sinónimo de Ditadura.
As formas de dominação, tanto da ditadura da burguesia como na ditadura do proletariado, é que podem ser diversas. A ditadura da burguesia pode exercer-se através de variadas estruturas dos órgãos do poder e da administração, ou seja, sob regimes políticos diferentes: república parlamentar, monarquia constitucional, governo militar, ditadura fascista, etc. Em qualquer caso é sempre a «ditadura da burguesia». A ditadura do proletariado pode também exercer-se com a existência de um ou de mais partidos, com um sistema soviético ou uma assembleia parlamentar, ou outras formas de organização do poder. As experiências históricas das democracias populares já mostraram que o sistema soviético não é o único possível para o exercício da ditadura do proletariado, não é a forma única e obrigatória dum estado socialista. O facto de quaisquer que sejam as formas de dominação da burguesia se tratar sempre de uma ditadura da burguesia não torna a classe operária indiferente a essas formas de dominação.
Nada tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista, uma vez que num caso e noutro se trata de
capitalismo. A repressão e o terror são utilizados precisamente para impedir o desenvolvimento da sua organização e da sua luta, para aniquilar os seus quadros, para cortar o caminho à revolução socialista. Enquanto subsistir o capitalismo, o proletariado está interessado em lutar para que a ditadura da burguesia se exerça através de formas o mais democráticas possível, pois estas não só são as que menos sofrimentos lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios, ganhar as massas para a causa da revolução socialista. Nesse sentido se afirma que a luta pela democracia é parte constitutiva da luta pelo socialismo.
Nada tem também a ver com o marxismo-leninismo a posição de alguns «ultrarevolucionários» ao afirmarem que, nas condições do Portugal de hoje, a instauração das liberdades democráticas, se não fosse acompanhada pela conquista do poder pelo proletariado, seria ainda pior que a ditadura fascista, uma vez que representaria a consolidação do poder da burguesia, cuja crise se agrava nas condições do fascismo. O Partido Comunista Português não considera a revolução antifascista como uma revolução democrático-burguesa, mas como uma revolução democrática e nacional, de natureza profundamente popular. Mas insiste em que o fim do fascismo e a instauração das liberdades fundamentais constituem um passo primeiro, fundamental e indispensável da revolução antifascista. Assim, não só formula uma reivindicação central, compreendida e sentida pelas mais vastas massas populares, como indica o caminho que pode conduzir à realização dos outros objectivos da revolução democrática e nacional e ao socialismo. Não é posição nova a do nosso Partido. Lénine numerosas vezes sublinhou que os comunistas russos «nunca separaram as tarefas da luta pelo socialismo das tarefas da luta pela liberdade política»
Ao mesmo tempo que indicamos a conquista da liberdade política como um primeiro objectivo central da revolução antifascista, afirmamos como marxistas-leninistas, como partido do proletariado, como revolucionários que pretendem pôr fim à exploração do homem pelo homem, que a mais democrática das democracias burguesas serve a burguesia contra proletariado, protege e defende a exploração dos trabalhadores, usa o poder do Estado contra os trabalhadores, e, se a luta destes põe em perigo os interesses do capital, a burguesia dominante, por muito «liberal» e «democrática» que seja, não hesita em violar a lei, retirar as liberdades e recorrer a métodos abertamente terroristas.
Como marxistas-leninistas, esclarecemos a classe operária e as massas da verdadeira natureza do Estado e da democracia. Quaisquer que sejam as formas do Estado burguês e do Estado proletário, o Estado proletário, tanto pela sua natureza como pela política que realiza, é sempre mais democrático que o Estado burguês. O Estado da burguesia é o instrumento de dominação por uma ínfima minoria de exploradores da maioria esmagadora da população; o Estado proletário é o instrumento da grande maioria contra uma ínfima minoria. O Estado burguês é um instrumento de exploração e de subjugação das classes trabalhadoras e visa perpetuar a divisão da sociedade em classes antagónicas, o Estado proletário é o instrumento da liquidação da exploração do homem pelo homem e do termo da divisão da sociedade em classes. Uma democracia burguesa, por muito amplas que sejam as «liberdades democráticas» e a autoridade do parlamento, é sempre uma ditadura da burguesia; qualquer ditadura do proletariado, mesmo quando assume formas «ditatoriais», é sempre mil vezes mais democrática do que qualquer democracia burguesa.
A Revolução de Outubro trouxe a primeira grande comprovação histórica desta verdade. Desde o início e no seu desenvolvimento, o primeiro Estado de operários e camponeses mostrou ser o Estado de mais profundo conteúdo democrático jamais existente na história da humanidade.
3.
A forma da ditadura do proletariado instaurada pela Revolução de Outubro foi o poder dos sovietes de deputados operários, soldados e camponeses. No próprio dia 7 de Novembro de 1917, discursando pela primeira vez depois do triunfo da revolução, Lénine proclamou: «Será destruído de raiz o velho aparelho de Estado e será criado um novo aparelho governativo sob a forma das organizações soviéticas.»
Os sovietes não foram uma criação artificial, decidida por teóricos num trabalho de gabinete. Os sovietes foram uma criação da classe operária e das massas trabalhadoras no decurso da luta revolucionária. Nascidos nas grandes batalhas políticas da Revolução de 1905-1907, reapareceram com o triunfo da revolução democrático-burguesa de Fevereiro de 1917 e ganharam tal amplitude que constituíram durante meses, até Julho de 1917, um órgão de poder paralelo do governo provisório da burguesia. O mérito de Lénine e do Partido Bolchevique não foi terem «inventado» os sovietes, mas terem sabido descobrir nesses organismos revolucionários criados pelas massas o órgão do poder no Estado proletário. Com a Revolução de Outubro, o poder do Estado passou para os sovietes. O primeiro Estado proletário foi e ainda é um Estado soviético.

Eleitos, não numa base territorial, mas directamente nas fábricas, nas oficinas, nas herdades, nas aldeias, nas unidades militares, os sovietes tornaram-se, não apenas organismos representativos das classes trabalhadoras, mas a forma de intervenção directa das massas na direcção do Estado. Tomando apenas os primeiros dez anos do poder soviético, cerca de 12 milhões e 500 mil pessoas foram deputados, membros de comités executivos e delegados a congressos dos sovietes. Os sovietes constituíram a forma de exercício do poder pelas vastas massas populares, a afirmação do carácter verdadeiramente democrático da primeira ditadura do proletariado.

Todo o aparelho do primeiro Estado socialista deixou de ser orientado pelo centralismo burocrático característico dos Estados burgueses, para ser orientado pelos princípios do centralismo democrático. Como qualquer outro Estado, o novo Estado não era neutro nem se situava acima das classes. O novo Estado foi criado para servir a aliança do proletariado com o campesinato e com amplas camadas não proletárias de trabalhadores, para servir a maioria esmagadora da população contra a resistência das camadas desalojadas do poder. Mas, por isso mesmo, quebrado, destruído, esmagado o velho aparelho do Estado, o aparelho do novo Estado adquiriu um carácter profundamente popular.

O Exército Vermelho nasceu do povo e da revolução. Provenientes da classe operária e do campesinato, os seus quadros forjaram-se no fogo da luta. Desde o primeiro dia, as unidades do Exército Vermelho estiveram indissoluvelmente ligadas à classe operária e aos camponeses, nas fábricas, nas aldeias, nos sindicatos. A justiça foi também profundamente democratizada. Através de juízes eleitos e de assessores populares, as massas trabalhadoras passaram a participar amplamente na sua administração. A milícia tornou-se um instrumento de defesa diária da segurança da população. Os funcionários passaram a ser eleitos e revocáveis. Como auxiliares do poder, os sindicatos participaram activamente na criação de organismos económicos, na elaboração dos planos de produção, no controlo operário sobre os dirigentes das actividades económicas. Escolas de gestão económica e administrativa, viveiros de quadros, os sindicatos, assim como as cooperativas de camponeses e artesãos, desempenharam importante papel na democratização da vida política e económica. Os sovietes, os sindicatos, as comissões de fábrica enviaram milhares de trabalhadores para os ministérios (comissariados do povo), para os comandos do exército e da milícia, para os órgãos de planificação e de gestão industrial. Foram os operários da Siemens-Shukart que deram os quadros para o primeiro núcleo de funcionários do Comissariado dos Negócios Estrangeiros; os da fábrica Putílov para o Comissariado do Interior; os do bairro Víborg de Petrogrado para o Comissariado da Instrução. Em vez da velha burocracia ao serviço do capital, é todo o sangue novo do proletariado revolucionário que corre nas veias do novo aparelho do Estado.

Pela primeira vez na história, as liberdades, a democracia, os direitos, deixaram de ser privilégio de uma minoria de exploradores, para serem a forma de viver e de intervir na vida política e social das vastas massas populares. O Estado soviético suprimiu as desigualdades de direitos por motivo de origem social, do sexo, da instrução ou de crenças religiosas. Pôs à disposição dos trabalhadores os meios materiais para exercerem os seus direitos democráticos (edifícios, tipografias, rádio, ruas). Socializando os instrumentos e meios de trabalho, criou as condições para que o povo passasse a gerir a produção e as instituições económicas. O novo Estado socialista, a primeira ditadura do proletariado, constituiu, nas palavras de Lénine, «um novo tipo de democracia»: «a democracia proletária».

Numa passagem de brilhante clareza, Lénine pôs em confronto o novo Estado socialista com o Estado burguês anterior. «O velho poder,» – escreveu Lénine – «como ditadura de uma minoria, só se podia manter exclusivamente por meio de maquinações policiais, exclusivamente por meio do afastamento, da exclusão da massa do povo da participação no poder, da fiscalização do poder (…) «O novo poder, como ditadura da imensa maioria, só podia manter-se e mantinha-se exclusivamente por meio da confiança da enorme massa, exclusivamente pelo facto de chamar do modo mais livre, mais amplo e mais forte toda a massa a participar no poder».

A Revolução de Outubro mostrou na vida a justeza da teoria leninista do Estado e da Revolução. Nenhum governo teria sido capaz de pôr fim à exploração capitalista, de nacionalizar a indústria, os transportes, os bancos e a terra, de confiscar os latifúndios e entregá-los aos camponeses, de assegurar a igualdade das nações submetidas ao antigo império russo, de assegurar à mulher direitos iguais aos do homem, de encetar e levar a bom termo a obra grandiosa da edificação da sociedade socialista, se não dispusesse de um aparelho do Estado ao serviço dos operários e camponeses. Sem a destruição do antigo Estado (do aparelho da ditadura da burguesia), sem a criação do novo Estado (do aparelho da ditadura do proletariado) em bases amplamente democráticas, sem a participação real das massas na direcção política e económica, não teria sido possível realizar a revolução socialista.

As formas de ditadura do proletariado podem variar e variam segundo as condições, os métodos e as circunstâncias de acesso da classe operária ao poder, segundo o grau de violência do acto revolucionário, segundo o grau de desenvolvimento do capitalismo, segundo a situação anterior e a arrumação das forças de classe, segundo o grau de resistência da burguesia reaccionária à construção do socialismo, segundo a conjuntura internacional e os auxílios externos à reacção interior. Lénine previra essa diversidade: «Todas as nações chegarão ao socialismo, isso é inevitável, mas chegarão todas de modo não exactamente idêntico, cada uma trará uma peculiaridade nesta ou naquela forma de democracia, nesta ou naquela variedade de ditadura do proletariado, neste ou naquele ritmo das transformações socialistas dos diferentes aspectos da vida social.»

O Estado, por sua natureza, significa a «organização da violência», mas o exercício do poder pelo proletariado pode ser mais tolerante ou mais severo segundo as exigências da situação e em particular segundo a posição da própria burguesia. Na Revolução de Outubro, a violência revolucionária a que foi obrigado o poder soviético resultou de «uma resistência tão feroz, tão insensata, insolente e desesperada» da burguesia. Sem essa resistência, no dizer de Lénine, a «revolução teria assumido formas mais pacíficas». A destruição do velho aparelho do Estado e a criação de um novo aparelho podem não excluir o aproveitamento de formas tradicionais de organização, cujo carácter de classe seja transformado. A tarefa dos partidos comunistas não é transplantar mecanicamente para os países respectivos as formas que tomou a ditadura do proletariado noutros países, não é querer imitar outras revoluções, antes saber encontrar as formas do poder político dos trabalhadores segundo as particularidades nacionais e o curso do processo revolucionário.

Quaisquer porém que sejam essas formas, os traços essenciais da Revolução de Outubro conservam completa actualidade no sentido da sua «repetição histórica inevitável» e constituem, no que respeita à questão do poder, à questão do Estado, o mais rico arsenal de experiências e ensinamentos para o proletariado revolucionário de todos os países.

4.

A teoria marxista-leninista do Estado e da Revolução e as experiências da Revolução de Outubro não são apenas válidas para a revolução proletária, mas para qualquer verdadeira revolução que substitua as classes que se encontram no poder por classes revolucionárias.

As forças democráticas portuguesas, que colocam como objectivo da sua luta o derrubamento da ditadura fascista e a construção dum Portugal democrático, estão vitalmente interessadas em definir uma correcta atitude em relação ao problema do Estado. Também as massas populares precisam de ter ideias claras a esse respeito, pois não se trata apenas de um problema teórico, mas duma questão central da acção revolucionária.

Se se considerarem as posições dos vários sectores da Oposição antifascista, um aspecto salta à vista: a íntima relação entre os objectivos políticos que cada qual atribui à revolução antifascista e as suas posições em relação ao problema do Estado: quanto menores são as transformações de ordem social e política encaradas, tanto menores são as exigências de modificação ou substituição do Estado actual, do Estado fascista.

Esta relação é lógica e inevitável. Se o aparelho do Estado é um instrumento das classes detentoras do poder, ele pode servir essas mesmas classes na realização duma nova política. Por isso, para aqueles sectores da Oposição que, voltados para o compromisso com os «dissidentes» do regime, se opõem, nas suas próprias palavras, aos que «aspiram a destruir a arquitectura social da Nação» (Carta da Acção Democrato-Social a Salazar, 4.9.1966), ou seja, para aqueles sectores que desejam manter o domínio dos monopólios e latifundiários, embora mudando os métodos de governação e instituindo certas liberdades, é evidente que se não torna necessário a destruição do Estado fascista, bastando a sua «remodelação» ou «liberalização».

Se os objectivos da revolução antifascista fossem os definidos em 1961 pela burguesia liberal no «Programa para a Democratização de República», para que seria necessária a destruição do aparelho do Estado fascista? Esse «Programa» não coloca como objectivo a liquidação do poder dos monopólios, mas apenas o «estreito controlo» daqueles que têm «exclusivos (!) de produção ou de serviços», a «consideração atenta» da sua actividade para efeitos fiscais (Cap. VIII, A 6), a «regulamentação» (?) das sociedades anónimas (Cap. VIII, B19 e C 33). Esse «Programa» mostra que os seus autores pensam não se dever tocar com um dedo nos latifundiários e nos grandes capitalistas na agricultura (Cap. VIII, D 37 e 38). Mostra que pretendem não só a manutenção como o reforço do domínio imperialista sobre Portugal (Cap. XIII, 4). As medidas propostas pelo «Programa» quanto ao fomento económico, quanto ao problema agrário, quanto à política social, quanto à «participação» dos operários no capital das empresas, constituem uma política aceitável pelos monopólios e em alguns aspectos simples reedições mal disfarçadas da política salazarista (Cap. VIII, A 4, A 6, A 9, D 38, E 53, etc.).

A realização desse «Programa» asseguraria aos grupos monopolistas e aos latifundiários manterem-se no poder para além da ditadura fascista, sobreviverem com novas formas de dominação política, encontrarem no fim de contas uma saída do beco a que os conduz o salazarismo. Para o realizar, uma equipa governante, fosse uma coligação de dissidentes e liberais, fosse mesmo uma coligação alargada até aos «socialistas», não teria necessidade nem vantagem de destruir o Estado fascista: bastar-lhe-ia «tomar conta dele», «remodelando-o» e «liberalizando-o». É por isso perfeitamente coerente que, no que respeita ao Estado fascista, o mesmo «Programa para a Democratização da República» inscreva apenas como objectivos a extinção da PIDE, dos Tribunais Plenários e das Corporações. O aparelho do Estado ficaria intacto no fundamental. A substituição do aparelho militar e repressivo ao serviço dum novo regime democrático é aspecto não só ignorado como escamoteado. O que nesse «Programa» se estabelecia no capítulo da «defesa nacional» aumento da «mobilidade» e «poder de choque» das unidades, distribuição territorial, repartição das dotações, etc. (Cap. XII) – tinha como claro fim reforçar o militarismo, dando satisfação às reivindicações de maior «especialização» e «eficiência técnica» da oficialidade reaccionária. Anuncia-se mesmo que a nomeação de generais «deixaria de ter o aspecto de escolha de carácter político» (Cap. XII, 7), o que significaria que o governo «democrático» não teria o cuidado de entregar os comandos a homens fiéis aos ideais da democracia e admitiria que ficassem nas mãos de fascistas e outros reaccionários. O mesmo em relação aos tribunais. Anunciando embora «uma reforma geral dos serviços da Justiça» (Cap. VI, 1), o «Programa» evita bulir na magistratura.

O aparelho do Estado, tal como o programava a burguesia liberal, estaria em condições de continuar a assegurar o poder dos monopólios e de impedir que as massas populares, após o derrubamento do fascismo, interviessem na determinação da política nacional e das grandes linhas da construção duma nova sociedade democrática.

É certo que o mesmo «Programa» inscreve, entre outras medidas o «restabelecimento das liberdades públicas» (Cap. I, 1). Mas, a admitir-se a sobrevivência no essencial do Estado fascista, as liberdades estariam desde início ameaçadas e não deixariam de ser violadas e suprimidas pelo mesmo aparelho do Estado no dia em que as classes que efectivamente continuariam a controlar esse aparelho sentissem ameaçados os seus interesses.

Tem de dizer-se claramente que, da parte de alguns oposicionistas inclinados ao compromisso com os «dissidentes do regime», a maior preocupação não é a de que a máquina do Estado fascista possa sobreviver ao termo da ditadura e comprometer assim o curso democrático da sociedade portuguesa, mas a preocupação de que essa máquina do Estado possa ser demasiado atingida e deixar por isso de estar em condições de refrear e sufocar a pretensão das massas populares intervirem activamente na construção de uma sociedade democrática.

Quando, antevendo a queda do fascismo, esses oposicionistas se mostram particularmente interessados em que a «ordem» não seja alterada, que significa isso senão que querem impedir a revolta popular e a acção das massas, que necessariamente significarão uma «alteração da ordem» e são entretanto essenciais para destruir o fascismo? Quando a Acção Democrato-Social garante a Salazar que repudia «quaisquer propósitos de subversão nacional» (Carta de 4.9.1966) que significa isso senão que teme a vaga de fundo efectivamente «subversiva» que será a manifestação das reivindicações das massas após 40 anos de fascismo? Quando esses e outros sectores, através dos anos, fazem repetidos apelos aos generais e aos comandos para que sejam eles a impor uma política «liberal» e a assegurar a «ordem», e quando propõem governos de coligação cuja existência seja garantida pelos mesmo generais e comandos, que significa isso senão que pretendem que as forças armadas, comandadas por fascistas e reaccionários, submetam e esmaguem, se necessário, as massas populares? Tais opiniões e atitudes mostram que a política de compromisso com os «dissidentes do regime» a política de salvação da «arquitectura social da nação» e de «defesa da ordem contra a subversão», a política de conservação das estruturas do Estado actual, é dirigida contra a classe operária e as vastas massas trabalhadoras, é dirigida contra uma transformação verdadeiramente democrática da sociedade portuguesa.

5.

Também antifascistas que se pronunciem por um Portugal democrático e independente, mesmo pelo socialismo, tomam em relação ao problema do Estado posição semelhante à daqueles que pretendem perpetuar a «ordem» dos monopólios para além do termo da ditadura fascista. Não nos referimos aqui a alguns que se intitulam «socialistas democráticos», mas cuja acção política não é o melhor atestado dos seus desejos de socialismo e de democracia. Referimo-nos agora a alguns que em numerosas ocasiões têm mostrado a sua aspiração a um Portugal democrático libertado do domínio dos monopólios dos grandes senhores da terra, do imperialismo estrangeiro. A posição que estes antifascistas assumem em relação ao problema do Estado não traduz evidentemente a intenção de assegurar a defesa dos interesses monopolistas. Mas traduz gravíssimas ilusões.

Essas ilusões, juntando-se à defesa da «arquitectura social da Nação» pelos sectores atrás referidos, têm influência negativa nas forças políticas e nas massas populares, tendendo a apagar no seu espírito a consciência do que representa o Estado fascista e da necessidade a sua destruição. Qualquer que fosse a via para o derrubamento do fascismo, tais ilusões, a manterem-se e a predominarem no movimento democrático, seriam susceptíveis de comprometer a vitória do povo português no dia em que ponha termo à ditadura fascista. Daí a necessidade de alertar contra os seus perigos. Segundo alguns, bastaria a formação dum governo de homens progressivos para assegurar a realização dum política progressiva. Se numa conjuntura política determinada (que ninguém explica qual seria) ficassem à frente dos ministérios homens decididos a realizar reformas sociais profundas, estas estariam por esse mesmo facto asseguradas. Tal a primeira grande ilusão, que prejudica a apreciação do processo revolucionário, deforma as perspectivas do movimento democrático e faz esquecer os objectivos fundamentais da revolução antifascista.

Não são apenas argumentos teóricos que mostram a sua fragilidade. A história do movimento revolucionário ensina que, se a máquina do Estado em que um governo se apoia está dominada pelas classes contra as quais o mesmo governo ou alguns dos seus membros pretendem em qualquer momento realizar uma política, essa mesma máquina do Estado (isto é o exército, as forças repressivas, os tribunais, a burocracia) sobrepõe-se ao governo e impede a sua acção, seja sabotando a aplicação dos decretos e decisões do governo, seja forçando remodelações ministeriais, seja ainda inspirando, apoiando ou servindo golpes de palácio ou putsche que afastem o governo e coloquem outro no seu lugar. Tanto em países capitalistas desenvolvidos, como em países recém-libertados da submissão nacional ou colonial, a história recente apresenta sucessivos exemplos comprovativos desta realidade. Cite-se porém apenas a experiência da revolução russa, uma vez que é esse o tema deste artigo.

Falando da revolução de Fevereiro de 1917, Lénine mostrava como a manutenção do aparelho do Estado impedia a acção dos próprios ministros mencheviques e socialistas-revolucionários. Salientando que «mesmo nestes ministérios todo o aparelho administrativo continuou a ser o velho, e ele entravava todo o trabalho», Lénine desfazia o logro espalhado nas massas populares segundo o qual a participação de ministros «socialistas» no governo seria suficiente para assegurar uma política «socialista». «Uma mudança de ministros significa muito pouco» – sublinhava Lénine – «pois todo o trabalho administrativo real está nas mãos de um exército gigantesco de funcionários (…) impregnado até à medula de um espírito antidemocrático, está ligado por milhares e milhões de fios aos latifundiários e à burguesia, dependendo deles de todas as formas». E concluía: «Tentar levar a cabo, por meio deste aparelho de Estado, transformações tais como a abolição da propriedade latifundiária da terra sem indemnização ou o monopólio dos cereais, etc., é a maior das ilusões, o maior engano de si próprio e o engano do povo».

Nos nossos dias e no nosso país, enganam-se também a si próprios e, queiram ou não queiram, enganam o povo aqueles que afirmam que a formação dum governo constituído por democratas, socialistas, mesmo comunistas, asseguraria, por si só, a realização duma política democrática, sem que para isso se tornasse necessária a destruição do aparelho do Estado organizado pelos fascistas. Alguns, reconhecendo a dificuldade, julgam descobrir a solução ao imaginarem uma redistribuição dos cargos, com demissões dos fascistas mais notórios dos lugares mais responsáveis e a nomeação em sua substituição de «homens de confiança». Nem se trata de um descoberta nem de uma solução. Tapando o buraco com uma tábua furada, à primeira ilusão acrescentam uma segunda.

Tal «solução» é a velha solução das «revoluções» burguesas e pequeno burguesas, em que os partidos, que se substituíam no poder, multiplicavam nomeações e redistribuições de cargos. Em Portugal, foi o processo habitual do partidos que se sucediam no governo, tanto no tempo da monarquia constitucional, como no da república parlamentar. Diversos políticos se gabaram de ter cansado os braços no primeiro dia de governo a assinar demissões e nomeações, E entretanto nos mais dos casos de pouco lhes valia o expediente. Tal «solução» pode ser viável (embora nem sempre o seja), quando se não trata de verdadeiras revoluções, quando se não trata de alterar a «arquitectura social da Nação», mas apenas de mudar equipas burguesas, por virtude do jogo de interesses e rivalidades de grupos e camadas da burguesia. Mas, quando se trata de revoluções que alteram a natureza de classe da política governamental, então a redistribuição dos cargos é insuficiente para que o aparelho do Estado assegure a realização pelo governo das reformas ou medidas revolucionárias que se impõem.

Falando ainda da revolução russa de Fevereiro de 1917, Lénine notava como «tanto em cima como em baixo», os cargos de funcionários se haviam tornado o espólio de kadetes, mencheviques e socialistas-revolucionários. As reformas que se impunham nem por isso foram realizadas. Não considerando de momento a via para o derrubamento do fascismo, se admitíssemos que, posto fim à ditadura fascista, se instalava no poder um governo democrático que se limitasse a «liberalizar» o aparelho do Estado fascista e a «redistribuir» os cargos, que aconteceria? Das duas uma: Ou tal governo pretendia realizar uma política realmente democrática, realizar as reformas indispensáveis para assegurar o progresso social, atingir as forças sociais e políticas reaccionárias, e nesse caso o aparelho do Estado sabotaria e impediria de facto a realização de tal política e seria, caso necessário, um instrumento da contra-revolução. Ou tal governo acabava por trair a sua missão, renunciando a uma política democrática e aceitando as imposições do capital financeiro e do aparelho do Estado que nunca deixara de servi-lo. E então? Então tão pouco seriam estáveis as «liberdades». É de prever que as classes trabalhadoras manifestariam a sua indignação, exigiriam do governo a satisfação das suas aspirações; e que o governo, apesar de «democrático» ou mesmo «socialista», apoiando-se no aparelho do Estado e agora apoiado por este, responderia com esquivas, com medidas demagógicas e finalmente com a repressão. A agudização da luta de classes levaria a equipa governante, com medo da revolução, a reforçar o aparelho repressivo. E, se em qualquer momento essa equipa não se mostrasse à altura da sua tarefa como defensora dos grupos monopolistas, dos latifundiários, dos colonialistas, do imperialismo estrangeiro, todos estes utilizariam a máquina do Estado, que lhes foram «conquistada» mas nunca verdadeiramente arrebatada, para formar um governo mais fiel aos seus interesses e mais «competente» na sua defesa. A reacção, a contra-revolução, mesmo o fascismo, passariam de novo à ofensiva.

As forças democráticas portuguesas devem trabalhar para que tais situações se não venham a verificar. Devem ter perfeitamente clara a ideia de que, depois de derrubado o fascismo, nenhuma política democrática poderá ser levada a cabo em Portugal, nenhumas reformas sociais profundas poderão ser realizadas, o poder dos monopólios e latifundiários não poderá ser liquidado, nenhuma garantia poderá haver contra nova ofensiva vitoriosa da reacção e do fascismo, se o aparelho do Estado for apenas conquistado, remodelado e liberalizado. É um absurdo pensar que uma revolução pode realizar-se apoiada no aparelho do Estado das classes contra as quais essa mesma revolução é dirigida.

6.

Se a revolução antifascista é considerada, não como a substituição da equipa governante fascista ao serviço dos monopólios por uma equipa liberal igualmente ao serviço dos monopólios, não como a precária subida ao poder de homens progressistas sem os meios de realizar uma política progressiva, mas como a abolição do poder dos monopólios e latifundiários, a sua expulsão do poder, a destruição das bases sociais do fascismo, a implantação dum regime democrático, a satisfação das aspirações mais sentidas dos trabalhadores, dos camponeses, dos intelectuais, das camadas sociais exploradas e oprimidas durante 40 anos de fascismo, – então a posição em relação ao problema do Estado tem de ser necessariamente diversa. Então tem de concluir-se que não basta tomar conta do aparelho do Estado. É necessário destruir a «organização da violência» o «poder especial de repressão» que os monopólios, os latifundiários, os sectores mais reaccionários da burguesia, criaram e organizaram cuidadosamente ao longo de dezenas de anos para seu uso e sua defesa. É necessário construir um aparelho do Estado capaz de assegurar a realização dos objectivos políticos, sociais, económicos e culturais da revolução antifascista, capaz de esmagar a resistência (que não deixará de ser encarniçada) das classes desalojadas do poder, capaz de defender o novo regime das tentativas da contra-revolução e mesmo de uma eventual intervenção estrangeira. Sem tal Estado, a democracia não será viável em Portugal.

O Partido Comunista Português, no seu programa, define a revolução antifascista como uma revolução democrática e nacional, cujos oito objectivos fundamentais são: 1.º Destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático; 2.º Liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico geral; 3.º Realizar a Reforma Agrária, entregando a terra a quem a trabalha; 4.º Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral; 5.º Democratizar a instrução e a cultura; 6.º Libertar Portugal do imperialismo; 7.º Reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência; 8.º Seguir uma política de paz e amizade com todos os povos (Cap. I).

O Programa do PCP considera que, sem a realização de todos estes objectivos, a revolução democrática e nacional não estará acabada e não estará assegurado o desenvolvimento democrático e independente da sociedade portuguesa. Mas sublinha que a «instauração das liberdades democráticas, a destruição do Estado fascista e a sua substituição por uma Estado democrático, constituem um objectivo central da revolução democrática e nacional para a realização dos seus outros objectivos». (Cap. I, 1.º).

Entre as medidas indicadas no Programa do PCP contam-se: a nacionalização dos bancos e grandes empresas monopolistas nas minas, na indústria, nos transportes e comunicações (Cap. I, 2,º 1); a nacionalização de empresas monopolistas estrangeiras (Cap. I, 6.º, 1); a Reforma Agrária (Cap. I, 3.º, 1 e 2); a reforma tributária instituindo impostos fortemente progressivos (Cap. I, 2.º, 8); a expropriação dos prédios urbanos pertencentes ao capital monopolista (Cap. I, 4.º, 7); etc. Estas e outras reformas e medidas nunca poderiam ser realizadas se o governo democrático se apoiasse numa máquina do Estado organizada precisamente para defender os interesses das classes por elas atingidas. «O Estado fascista (as forças armadas, a polícia, os tribunais, o aparelho governamental burocrático)» – diz o Programa do Partido – «é o instrumento da opressão exercida pela burguesia monopolista e pelos latifundiários sobre as vastas massas da população (…) A máquina do Estado fascista nunca poderia servir a democracia. As forças revolucionárias não se podem limitar a tomar conta da máquina do Estado fascista, para utilizá-la pronta como está, introduzindo-lhe apenas modificações e substituindo funcionários. A primeira tarefa das forças revolucionárias é destruir o Estado fascista e substituí-lo por um Estado democrático, ao serviço do povo, ao serviço da revolução democrática e nacional». (Cap. I, 1.º)

Quaisquer que sejam as circunstâncias em que a ditadura fascista venha a ser derrubada, as forças democráticas e as massas populares, tanto no decurso do processo revolucionário como após o derrubamento do fascismo, não podem perder de vista um momento que seja esta sua «primeira tarefa». A situação nacional, a evolução política, as experiências da luta, as características do Estado fascista indicam que o derrubamento do fascismo exigirá uma luta revolucionária aguda, uma insurreição popular. A parte do aparelho do Estado fascista que não for destruída no decurso do processo insurreccional deve ser destruída urgentemente, sem perda de tempo, logo após. Se isso não foi feito, não só não poderá ser realizada uma política democrática, como a contra-revolução não tardará.

Para construir um Portugal Democrático e Independente é necessário que os órgãos do poder se baseiem na vontade popular e liguem constantemente a sua acção às aspirações das classes e camadas laboriosas. É necessário que as forças armadas e de segurança, os serviços judiciais, o aparelho burocrático, sejam organizados para a defesa da revolução. É necessário que as massas populares intervenham activamente em toda a vida nacional, desenvolvendo amplamente a sua energia criadora. É necessário que o povo português se torne de facto senhor do seu destino. Tudo isto significa: é necessário organizar um novo aparelho do Estado profundamente democrático.

A teoria marxista-leninista do Estado é a única que dá, não apenas à classe operária, mas a quaisquer forças revolucionárias, uma base científica para resolverem os problemas práticos da conquista do poder, da organização dos seus órgãos, da sua defesa e da sua consolidação. As experiências da Revolução de Outubro conservam toda a sua actualidade. Nas vésperas de Outubro, vivendo clandestinamente na cabana de Razliv e escrevendo no cepo duma árvore, Lénine apontava a acção a empreender em relação ao Estado, como condição necessária para a vitória. Esse exemplo deve estar presente no nosso espírito.

Forças democráticas que pretendam representar um papel dirigente na revolução antifascista têm o dever de definir, e já, uma orientação correcta em relação ao problema do Estado, pois erros e ilusões poderão comprometer ou anular tragicamente o grande êxito da revolução e abrir passo à contra-revolução. O Partido Comunista, partido do proletariado, não só procurará dar a sua contribuição teórica para a compreensão do problema como empregará incansavelmente os seus esforços para que a classe operária e as massas, na acção revolucionária, decidam na prática a questão do Estado, que certos chefes não entendem ou não querem entender. O sucesso da revolução antifascista, a construção dum Portugal democrático, assim o exige.


Sem comentários:

Enviar um comentário