A
30 quilómetros a Noroeste de Leningrado, Razliv é hoje um lugar
histórico. Aí, num sítio ermo, se poder ver a reconstituição da
cabana onde Lénine viveu clandestinamente em Agosto de 1917. Aí se
pode ver também o cepo de uma árvore, que Lénine utilizava como
mesa para escrever.
O
Verão de 1917 foi um momento de viragem decisiva na revolução
russa. Terminara a dualidade de poderes, situação original criada
pela revolução, em que, ao lado do governo provisório, governo da
burguesia, se formara um outro governo «indubitavelmente existente
de facto e em desenvolvimento: os sovietes de deputados e operários
e soldados.» Os mencheviques e socialistas-revolucionários,
impedindo que todo o poder fosse entregue aos sovietes e entrando num
«governo de coligação», entregaram de facto todo o poder à
burguesia. A contra-revolução passou à ofensiva. Novas tarefas se
colocaram ao proletariado e ao seu partido, o partido dos
bolcheviques. Como descreveu Lenine, se até Julho «era ainda
possível o desenvolvimento pacífico em diante da revolução
russa», a partir de então a questão punha-se em novos termos «ou
a vitória completa da contra-revolução, ou uma nova revolução».
Nas
vésperas da «nova revolução», que problema considerava Lénine
necessário abordar sem perda de tempo e o levava a escrever
febrilmente no cepo da árvore em Razliv? Esse problema era o
problema do Estado e a obra que então Lénine escrevia viria a
constituir uma obra fundamental da teoria da revolução: O Estado e
a Revolução. Já nas «Teses de Abril», Lénine caracterizava a
situação como a «transição da primeira etapa da revolução, que
deu o poder à burguesia», para a segunda etapa, que devia dar o
poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato. De Abril a
Julho de 1917, em numerosos artigos e discursos, Lénine insiste na
importância do problema do Estado. É porém em O Estado e a
Revolução que, não só expõe duma forma sistematizada a teoria de
Marx e a defende dos seus detractores, como a aprofunda e enriquece
com a sua investigação teórica criadora assente nas experiências
do movimento revolucionário. Nas vésperas da revolução
socialista, a ideia fundamental que Lénine julga necessário
demonstrar exaustivamente e defender com paixão é que, conquistando
o poder, o proletariado não se pode limitar a tomar conta do
aparelho do Estado burguês, mas tem de destruí-lo e substituí-lo
por um novo Estado.
1.
A
teoria marxista da luta de classes permite explicar a origem e a
natureza do Estado e os seus diversos tipos e formas. Marx descobriu
e demonstrou que o Estado é um poder que nasce da sociedade numa
fase determinada do seu desenvolvimento, como resultado da divisão
em classes e do antagonismo irreconciliável das classes, como
necessidade do recurso à coacção por uma minoria exploradora para
manter a exploração da maioria. O Estado é uma «organização
especial do poder», «um poder especial de repressão», «a
organização da violência», um aparelho militar e burocrático
constituído especialmente pelas forças armadas, pela polícia,
pelos tribunais, pelos órgãos legislativos e executivos, pelo
funcionalismo. Aparentemente acima da sociedade e das classes, o
Estado é na realidade um instrumento de dominação e opressão de
uma classe sobre outras classes.
A
correcta compreensão da natureza do Estado é essencial para toda a
acção revolucionária do proletariado, particularmente quando se
coloca na ordem do dia a conquista do poder. Marx descobriu que a
luta de classes, que se trava na sociedade capitalista, conduz
necessariamente à revolução da classe operária, à conquista do
poder político pelo proletariado, a um novo Estado definido no
Manifesto Comunista como «do proletariado organizado como classe
dominante».Esta é a conclusão fundamental da teoria marxista da
luta de classes. Não podem pretender ser marxistas aqueles que a
rejeitam. Falando da sua teoria da luta de classes, Marx lembrava que
não lhe cabia a ele o mérito, nem de ter descoberto a existência
das classes, nem de ter descoberto a luta de classes. «O que de novo
eu fiz, foi: 1. demonstrar que a existência das classes está apenas
ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da
produção; 2. que a luta das classes conduz necessariamente à
ditadura do proletariado; 3. que esta mesma ditadura só constitui a
transição para a superação de todas as classes e para
uma sociedade sem classes.»
O
papel do proletariado na revolução socialista decorre das suas
próprias características como classe na sociedade capitalista. «De
todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia» –
proclamava o Manifesto Comunista – «só o proletariado é uma
classe realmente revolucionária». «Os proletários nada têm a
perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar.»
Defendendo e desenvolvendo as ideias de Marx, Lénine insistiu em que
só o proletariado, como «única classe revolucionária até ao
fim», pode ser «o chefe de todas as massas trabalhadoras e
exploradas que a burguesia explora, oprime e esmaga muitas vezes não
menos mais fortemente que os proletários, mas que são incapazes de
uma luta independente pela sua emancipação.» Por isso, o poder da
burguesia só pode ser abatido «pela transformação do proletariado
em classe dominante capaz de reprimir a resistência, inevitável,
desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime de
economia todas as massas trabalhadoras e exploradas».
O
proletariado transformado em «classe dominante» como escreveu
Lénine, o proletariado «organizado como classe dominante» como
definiu o Manifesto, é precisamente a ditadura do proletariado, o
novo Estado proletário. «O proletariado necessita do poder de
Estado, de uma organização centralizada da força, de uma
organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos
exploradores como para dirigir a imensa massa da população, o
campesinato, a pequena burguesia, os semi-proletários, na obra da
organização da economia socialista».Mas como organizar o poder do
Estado? A conquista do poder significará a conquista do aparelho do
Estado? A esta questão Marx deu uma primeira e clara resposta, que
depois Lénine desenvolveu.
Estudando
atentamente a experiência revolucionária, Marx sublinhava em 1852
que até então as revoluções políticas não tinham feito mais do
que aperfeiçoar a máquina do Estado pois «os partidos que lutavam
alternadamente pela dominação, consideravam a tomada de posse deste
imenso edifício do Estado como a presa principal do vencedor». A
experiência da grande revolução proletária do século XIX, a
Comuna de Paris de 1871, permitiu a Marx avançar e precisar a sua
doutrina. Essa experiência comprovou que, ao contrário do sucedido
nas revoluções burguesas, «a classe operária [ao conquistar o
poder] não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já
pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objectivos».
Destruir a máquina do Estado, concluiu Marx, «é a condição
prévia de toda a verdadeira revolução popular no continente.»É
nessa conclusão fundamental que Lénine insiste e é sobre ela que
escreve no cepo da árvore em Razliv, no Verão de 1917, no momento
em que ao proletariado russo se colocava a tarefa de realizar a sua
revolução. A libertação da classe oprimida (escreve Lénine) é
impossível «s e m a d e s t r u i ç ã o» do aparelho do poder de
Estado que foi criado pela classe dominante» e a sua substituição
«”por uma força especial para a repressão” da burguesia pelo
proletariado».
Lénine
alertava contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da
possibilidade de realizar a revolução socialista, se o proletariado
e as classes dominantes se limitassem tomar conta do aparelho do
Estado, cuidando poder utilizá-lo contra a burguesia. Em
conformidade com tal conclusão, indicava ao proletariado russo e ao
seu partido uma tarefa capital para a conquista do poder pelos
trabalhadores: a destruição do Estado burguês e a construção dum
novo Estado, dum Estado dos operários e camponeses que, sob a
direcção da classe operária, quebrasse a resistência decerto
encarniçada da burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo
homem, pusesse termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse
a transformação revolucionária da sociedade capitalista em
sociedade socialista. Tal a essência da ditadura do proletariado.
2.
Quando
se fala em teoria marxista-leninista do Estado, deve ter-se sempre
presente o significado da palavra «ditadura», empregada tanto em
relação aos estados capitalistas, – à «ditadura da burguesia»,
como em relação aos estados socialistas – à «ditadura do
proletariado». A clara explicação desse significado é essencial
para a compreensão da teoria da revolução e para a determinação
da posição das várias classes e forças políticas em relação ao
problema da democracia.
Os
ideólogos burgueses, incluindo liberais e socialistas, baralham os
dados do problema e procuram mostrar que os comunistas, defendendo a
ditadura do proletariado, se opõem à democracia, e que os burgueses
liberais e os socialistas é em nome da democracia que se opõem à
ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado, como
«ditadura», seria um regime de opressão, enquanto a democracia
burguesa, como «democracia», seria um regime de liberdade.
A
verdade é que a palavra «ditadura», na teoria marxista-leninista
do Estado, não significa uma forma particular de dominação de uma
ou várias classes por outra ou outras classes, mas o próprio facto
dessa dominação. Segundo a teoria leninista, o Estado numa
sociedade dividida em classes antagónicas é sempre uma ditadura. A
expressão «ditadura» sublinha que o Estado não está acima das
classes, não é um instrumento de conciliação das classes nem um
árbitro entre elas, antes é a «organização da violência», é
um «poder especial de repressão», é um organismo de dominação
de umas classes sobre outras. Em resumo: numa sociedade dividida em
classes antagónicas, Estado é sinónimo de Ditadura.
As
formas de dominação, tanto da ditadura da burguesia como na
ditadura do proletariado, é que podem ser diversas. A ditadura da
burguesia pode exercer-se através de variadas estruturas dos órgãos
do poder e da administração, ou seja, sob regimes políticos
diferentes: república parlamentar, monarquia constitucional, governo
militar, ditadura fascista, etc. Em qualquer caso é sempre a
«ditadura da burguesia». A ditadura do proletariado pode também
exercer-se com a existência de um ou de mais partidos, com um
sistema soviético ou uma assembleia parlamentar, ou outras formas de
organização do poder. As experiências históricas das democracias
populares já mostraram que o sistema soviético não é o único
possível para o exercício da ditadura do proletariado, não é a
forma única e obrigatória dum estado socialista. O facto de
quaisquer que sejam as formas de dominação da burguesia se tratar
sempre de uma ditadura da burguesia não torna a classe operária
indiferente a essas formas de dominação.
Nada
tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a
qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se
exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista, uma vez que
num caso e noutro se trata de
capitalismo.
A repressão e o terror são utilizados precisamente para impedir o
desenvolvimento da sua organização e da sua luta, para aniquilar os
seus quadros, para cortar o caminho à revolução socialista.
Enquanto subsistir o capitalismo, o proletariado está interessado em
lutar para que a ditadura da burguesia se exerça através de formas
o mais democráticas possível, pois estas não só são as que menos
sofrimentos lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem
defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas
organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios, ganhar
as massas para a causa da revolução socialista. Nesse sentido se
afirma que a luta pela democracia é parte constitutiva da luta pelo
socialismo.
Nada
tem também a ver com o marxismo-leninismo a posição de alguns
«ultrarevolucionários» ao afirmarem que, nas condições do
Portugal de hoje, a instauração das liberdades democráticas, se
não fosse acompanhada pela conquista do poder pelo proletariado,
seria ainda pior que a ditadura fascista, uma vez que representaria a
consolidação do poder da burguesia, cuja crise se agrava nas
condições do fascismo. O Partido Comunista Português não
considera a revolução antifascista como uma revolução
democrático-burguesa, mas como uma revolução democrática e
nacional, de natureza profundamente popular. Mas insiste em que o fim
do fascismo e a instauração das liberdades fundamentais constituem
um passo primeiro, fundamental e indispensável da revolução
antifascista. Assim, não só formula uma reivindicação central,
compreendida e sentida pelas mais vastas massas populares, como
indica o caminho que pode conduzir à realização dos outros
objectivos da revolução democrática e nacional e ao socialismo.
Não é posição nova a do nosso Partido. Lénine numerosas vezes
sublinhou que os comunistas russos «nunca separaram as tarefas da
luta pelo socialismo das tarefas da luta pela liberdade política»
Ao
mesmo tempo que indicamos a conquista da liberdade política como um
primeiro objectivo central da revolução antifascista, afirmamos
como marxistas-leninistas, como partido do proletariado, como
revolucionários que pretendem pôr fim à exploração do homem pelo
homem, que a mais democrática das democracias burguesas serve a
burguesia contra proletariado, protege e defende a exploração dos
trabalhadores, usa o poder do Estado contra os trabalhadores, e, se a
luta destes põe em perigo os interesses do capital, a burguesia
dominante, por muito «liberal» e «democrática» que seja, não
hesita em violar a lei, retirar as liberdades e recorrer a métodos
abertamente terroristas.
Como
marxistas-leninistas, esclarecemos a classe operária e as massas da
verdadeira natureza do Estado e da democracia. Quaisquer que sejam as
formas do Estado burguês e do Estado proletário, o Estado
proletário, tanto pela sua natureza como pela política que realiza,
é sempre mais democrático que o Estado burguês. O Estado da
burguesia é o instrumento de dominação por uma ínfima minoria de
exploradores da maioria esmagadora da população; o Estado
proletário é o instrumento da grande maioria contra uma ínfima
minoria. O Estado burguês é um instrumento de exploração e de
subjugação das classes trabalhadoras e visa perpetuar a divisão da
sociedade em classes antagónicas, o Estado proletário é o
instrumento da liquidação da exploração do homem pelo homem e do
termo da divisão da sociedade em classes. Uma democracia burguesa,
por muito amplas que sejam as «liberdades democráticas» e a
autoridade do parlamento, é sempre uma ditadura da burguesia;
qualquer ditadura do proletariado, mesmo quando assume formas
«ditatoriais», é sempre mil vezes mais democrática do que
qualquer democracia burguesa.
A
Revolução de Outubro trouxe a primeira grande comprovação
histórica desta verdade. Desde o início e no seu desenvolvimento, o
primeiro Estado de operários e camponeses mostrou ser o Estado de
mais profundo conteúdo democrático jamais existente na história da
humanidade.
3.
A
forma da ditadura do proletariado instaurada pela Revolução de
Outubro foi o poder dos sovietes de deputados operários, soldados e
camponeses. No próprio dia 7 de Novembro de 1917, discursando pela
primeira vez depois do triunfo da revolução, Lénine proclamou:
«Será destruído de raiz o velho aparelho de Estado e será criado
um novo aparelho governativo sob a forma das organizações
soviéticas.»
Os
sovietes não foram uma criação artificial, decidida por teóricos
num trabalho de gabinete. Os sovietes foram uma criação da classe
operária e das massas trabalhadoras no decurso da luta
revolucionária. Nascidos nas grandes batalhas políticas da
Revolução de 1905-1907, reapareceram com o triunfo da revolução
democrático-burguesa de Fevereiro de 1917 e ganharam tal amplitude
que constituíram durante meses, até Julho de 1917, um órgão de
poder paralelo do governo provisório da burguesia. O mérito de
Lénine e do Partido Bolchevique não foi terem «inventado» os
sovietes, mas terem sabido descobrir nesses organismos
revolucionários criados pelas massas o órgão do poder no Estado
proletário. Com a Revolução de Outubro, o poder do Estado passou
para os sovietes. O primeiro Estado proletário foi e ainda é um
Estado soviético.
Eleitos,
não numa base territorial, mas directamente nas fábricas, nas
oficinas, nas herdades, nas aldeias, nas unidades militares, os
sovietes tornaram-se, não apenas organismos representativos das
classes trabalhadoras, mas a forma de intervenção directa das
massas na direcção do Estado. Tomando apenas os primeiros dez anos
do poder soviético, cerca de 12 milhões e 500 mil pessoas foram
deputados, membros de comités executivos e delegados a congressos
dos sovietes. Os sovietes constituíram a forma de exercício do
poder pelas vastas massas populares, a afirmação do carácter
verdadeiramente democrático da primeira ditadura do proletariado.
Todo
o aparelho do primeiro Estado socialista deixou de ser orientado pelo
centralismo burocrático característico dos Estados burgueses, para
ser orientado pelos princípios do centralismo democrático. Como
qualquer outro Estado, o novo Estado não era neutro nem se situava
acima das classes. O novo Estado foi criado para servir a aliança do
proletariado com o campesinato e com amplas camadas não proletárias
de trabalhadores, para servir a maioria esmagadora da população
contra a resistência das camadas desalojadas do poder. Mas, por isso
mesmo, quebrado, destruído, esmagado o velho aparelho do Estado, o
aparelho do novo Estado adquiriu um carácter profundamente popular.
O
Exército Vermelho nasceu do povo e da revolução. Provenientes da
classe operária e do campesinato, os seus quadros forjaram-se no
fogo da luta. Desde o primeiro dia, as unidades do Exército Vermelho
estiveram indissoluvelmente ligadas à classe operária e aos
camponeses, nas fábricas, nas aldeias, nos sindicatos. A justiça
foi também profundamente democratizada. Através de juízes eleitos
e de assessores populares, as massas trabalhadoras passaram a
participar amplamente na sua administração. A milícia tornou-se um
instrumento de defesa diária da segurança da população. Os
funcionários passaram a ser eleitos e revocáveis. Como auxiliares
do poder, os sindicatos participaram activamente na criação de
organismos económicos, na elaboração dos planos de produção, no
controlo operário sobre os dirigentes das actividades económicas.
Escolas de gestão económica e administrativa, viveiros de quadros,
os sindicatos, assim como as cooperativas
de camponeses e artesãos, desempenharam importante papel na
democratização da vida política e económica. Os sovietes, os
sindicatos, as comissões de fábrica enviaram milhares de
trabalhadores para os ministérios (comissariados do povo), para os
comandos do exército e da milícia, para os órgãos de planificação
e de gestão industrial. Foram os operários da Siemens-Shukart que
deram os quadros para o primeiro núcleo de funcionários do
Comissariado dos Negócios Estrangeiros; os da fábrica Putílov para
o Comissariado do Interior; os do bairro Víborg de Petrogrado para o
Comissariado da Instrução. Em vez da velha burocracia ao serviço
do capital, é todo o sangue novo do proletariado revolucionário que
corre nas veias do novo aparelho do Estado.
Pela
primeira vez na história, as liberdades, a democracia, os direitos,
deixaram de ser privilégio de uma minoria de exploradores, para
serem a forma de viver e de intervir na vida política e social das
vastas massas populares. O Estado soviético suprimiu as
desigualdades de direitos por motivo de origem social, do sexo, da
instrução ou de crenças religiosas. Pôs à disposição dos
trabalhadores os meios materiais para exercerem os seus direitos
democráticos (edifícios, tipografias, rádio, ruas). Socializando
os instrumentos e meios de trabalho, criou as condições para que o
povo passasse a gerir a produção e as instituições económicas. O
novo Estado socialista, a primeira ditadura do proletariado,
constituiu, nas palavras de Lénine, «um novo tipo de democracia»:
«a democracia proletária».
Numa
passagem de brilhante clareza, Lénine pôs em confronto o novo
Estado socialista com o Estado burguês anterior. «O velho poder,»
– escreveu Lénine – «como ditadura de uma minoria, só se podia
manter exclusivamente por meio de maquinações policiais,
exclusivamente por meio do afastamento, da exclusão da massa do povo
da participação no poder, da fiscalização do poder (…) «O novo
poder, como ditadura da imensa maioria, só podia manter-se e
mantinha-se exclusivamente por meio da confiança da enorme massa,
exclusivamente pelo facto de chamar do modo mais livre, mais amplo e
mais forte toda a massa a participar no poder».
A
Revolução de Outubro mostrou na vida a justeza da teoria leninista
do Estado e da Revolução. Nenhum governo teria sido capaz de pôr
fim à exploração capitalista, de nacionalizar a indústria, os
transportes, os bancos e a terra, de confiscar os latifúndios e
entregá-los aos camponeses, de assegurar a igualdade das nações
submetidas ao antigo império russo, de assegurar à mulher direitos
iguais aos do homem, de encetar e levar a bom termo a obra grandiosa
da edificação da sociedade socialista, se não dispusesse de um
aparelho do Estado ao serviço dos operários e camponeses. Sem a
destruição do antigo Estado (do aparelho da ditadura da burguesia),
sem a criação do novo Estado (do aparelho da ditadura do
proletariado) em bases amplamente democráticas, sem a participação
real das massas na direcção política e económica, não teria sido
possível realizar a revolução socialista.
As
formas de ditadura do proletariado podem variar e variam segundo as
condições, os métodos e as circunstâncias de acesso da classe
operária ao poder, segundo o grau de violência do acto
revolucionário, segundo o grau de desenvolvimento do capitalismo,
segundo a situação anterior e a arrumação das forças de classe,
segundo o grau de resistência da burguesia reaccionária à
construção do socialismo, segundo a conjuntura internacional e os
auxílios externos à reacção interior. Lénine previra essa
diversidade: «Todas as nações chegarão ao socialismo, isso é
inevitável, mas chegarão todas de modo não exactamente idêntico,
cada uma trará uma peculiaridade nesta ou naquela forma de
democracia, nesta ou naquela variedade de ditadura do proletariado,
neste ou naquele ritmo das transformações socialistas dos
diferentes aspectos da vida social.»
O
Estado, por sua natureza, significa a «organização da violência»,
mas o exercício do poder pelo proletariado pode ser mais tolerante
ou mais severo segundo as exigências da situação e em particular
segundo a posição da própria burguesia. Na Revolução de Outubro,
a violência revolucionária a que foi obrigado o poder soviético
resultou de «uma resistência tão feroz, tão insensata, insolente
e desesperada» da burguesia. Sem essa resistência, no dizer de
Lénine, a «revolução teria assumido formas mais pacíficas». A
destruição do velho aparelho do Estado e a criação de um novo
aparelho podem não excluir o aproveitamento de formas tradicionais
de organização, cujo carácter de classe seja transformado. A
tarefa dos partidos comunistas não é transplantar mecanicamente
para os países respectivos as formas que tomou a ditadura do
proletariado noutros países, não é querer imitar outras
revoluções, antes saber encontrar as formas do poder político dos
trabalhadores segundo as particularidades nacionais e o curso do
processo revolucionário.
Quaisquer
porém que sejam essas formas, os traços essenciais da Revolução
de Outubro conservam completa actualidade no sentido da sua
«repetição histórica inevitável» e constituem, no que respeita
à questão do poder, à questão do Estado, o mais rico arsenal de
experiências e ensinamentos para o proletariado revolucionário de
todos os países.
4.
A
teoria marxista-leninista do Estado e da Revolução e as
experiências da Revolução de Outubro não são apenas válidas
para a revolução proletária, mas para qualquer verdadeira
revolução que substitua as classes que se encontram no poder por
classes revolucionárias.
As
forças democráticas portuguesas, que colocam como objectivo da sua
luta o derrubamento da ditadura fascista e a construção dum
Portugal democrático, estão vitalmente interessadas em definir uma
correcta atitude em relação ao problema do Estado. Também as
massas populares precisam de ter ideias claras a esse respeito, pois
não se trata apenas de um problema teórico, mas duma questão
central da acção revolucionária.
Se
se considerarem as posições dos vários sectores da Oposição
antifascista, um aspecto salta à vista: a íntima relação entre os
objectivos políticos que cada qual atribui à revolução
antifascista e as suas posições em relação ao problema do Estado:
quanto menores são as transformações de ordem social e política
encaradas, tanto menores são as exigências de modificação ou
substituição do Estado actual, do Estado fascista.
Esta
relação é lógica e inevitável. Se o aparelho do Estado é um
instrumento das classes detentoras do poder, ele pode servir essas
mesmas classes na realização duma nova política. Por isso, para
aqueles sectores da Oposição que, voltados para o compromisso com
os «dissidentes» do regime, se opõem, nas suas próprias palavras,
aos que «aspiram a destruir a arquitectura social da Nação»
(Carta da Acção Democrato-Social a Salazar, 4.9.1966), ou seja,
para aqueles sectores que desejam manter o domínio dos monopólios e
latifundiários, embora mudando os métodos de governação e
instituindo certas liberdades, é evidente que se não torna
necessário a destruição do Estado fascista, bastando a sua
«remodelação» ou «liberalização».
Se
os objectivos da revolução antifascista fossem os definidos em 1961
pela burguesia liberal no «Programa para a Democratização de
República», para que seria necessária a destruição do aparelho
do Estado fascista? Esse «Programa» não coloca como objectivo a
liquidação do poder dos monopólios, mas apenas o «estreito
controlo» daqueles que têm «exclusivos (!) de produção ou de
serviços», a «consideração atenta» da sua actividade para
efeitos fiscais (Cap. VIII, A 6), a «regulamentação» (?) das
sociedades anónimas (Cap. VIII, B19 e C 33). Esse «Programa»
mostra que os seus autores pensam não se dever tocar com um dedo nos
latifundiários e nos grandes capitalistas na agricultura (Cap. VIII,
D 37 e 38). Mostra que pretendem não só a manutenção como o
reforço do domínio imperialista sobre Portugal (Cap. XIII, 4). As
medidas propostas pelo «Programa» quanto ao fomento económico,
quanto ao problema agrário, quanto à política social,
quanto à «participação» dos operários no capital das empresas,
constituem uma política aceitável pelos monopólios e em alguns
aspectos simples reedições mal disfarçadas da política
salazarista (Cap. VIII, A 4, A 6, A 9, D 38, E 53, etc.).
A
realização desse «Programa» asseguraria aos grupos monopolistas e
aos latifundiários manterem-se no poder para além da ditadura
fascista, sobreviverem com novas formas de dominação política,
encontrarem no fim de contas uma saída do beco a que os conduz o
salazarismo. Para o realizar, uma equipa governante, fosse uma
coligação de dissidentes e liberais, fosse mesmo uma coligação
alargada até aos «socialistas», não teria necessidade nem
vantagem de destruir o Estado fascista: bastar-lhe-ia «tomar conta
dele», «remodelando-o» e «liberalizando-o». É por isso
perfeitamente coerente que, no que respeita ao Estado fascista, o
mesmo «Programa para a Democratização da República» inscreva
apenas como objectivos a extinção da PIDE, dos Tribunais Plenários
e das Corporações. O aparelho do Estado ficaria intacto no
fundamental. A substituição do aparelho militar e repressivo ao
serviço dum novo regime democrático é aspecto não só ignorado
como escamoteado. O que nesse «Programa» se estabelecia no capítulo
da «defesa nacional» aumento da «mobilidade» e «poder de choque»
das unidades, distribuição territorial, repartição das dotações,
etc. (Cap. XII) – tinha como claro fim reforçar o militarismo,
dando satisfação às reivindicações de maior «especialização»
e «eficiência técnica» da oficialidade reaccionária. Anuncia-se
mesmo que a nomeação de generais «deixaria de ter o aspecto de
escolha de carácter político» (Cap. XII, 7), o que significaria
que o governo «democrático» não teria o cuidado de entregar os
comandos a homens fiéis aos ideais da democracia e admitiria que
ficassem nas mãos de fascistas e outros reaccionários. O mesmo em
relação aos tribunais. Anunciando embora «uma reforma geral dos
serviços da Justiça» (Cap. VI, 1), o «Programa» evita bulir na
magistratura.
O
aparelho do Estado, tal como o programava a burguesia liberal,
estaria em condições de continuar a assegurar o poder dos
monopólios e de impedir que as massas populares, após o
derrubamento do fascismo, interviessem na determinação da política
nacional e das grandes linhas da construção duma nova sociedade
democrática.
É
certo que o mesmo «Programa» inscreve, entre outras medidas o
«restabelecimento das liberdades públicas» (Cap. I, 1). Mas, a
admitir-se a sobrevivência no essencial do Estado fascista, as
liberdades estariam desde início ameaçadas e não deixariam de ser
violadas e suprimidas pelo mesmo aparelho do Estado no dia em que as
classes que efectivamente continuariam a controlar esse aparelho
sentissem ameaçados os seus interesses.
Tem
de dizer-se claramente que, da parte de alguns oposicionistas
inclinados ao compromisso com os «dissidentes do regime», a maior
preocupação não é a de que a máquina do Estado fascista possa
sobreviver ao termo da ditadura e comprometer assim o curso
democrático da sociedade portuguesa, mas a preocupação de que essa
máquina do Estado possa ser demasiado atingida e deixar por isso de
estar em condições de refrear e sufocar a pretensão das massas
populares intervirem activamente na construção de uma sociedade
democrática.
Quando,
antevendo a queda do fascismo, esses oposicionistas se mostram
particularmente interessados em que a «ordem» não seja alterada,
que significa isso senão que querem impedir a revolta popular e a
acção das massas, que necessariamente significarão uma «alteração
da ordem» e são entretanto essenciais para destruir o fascismo?
Quando a Acção Democrato-Social garante a Salazar que repudia
«quaisquer propósitos de subversão nacional» (Carta de 4.9.1966)
que significa isso senão que teme a vaga de fundo efectivamente
«subversiva» que será a manifestação das reivindicações das
massas após 40 anos de fascismo? Quando esses e outros sectores,
através dos anos, fazem repetidos apelos aos generais e aos comandos
para que sejam eles a impor uma política «liberal» e a assegurar a
«ordem», e quando propõem governos de coligação cuja existência
seja garantida pelos mesmo generais e comandos, que significa isso senão
que pretendem que as forças armadas, comandadas por fascistas e
reaccionários, submetam e esmaguem, se necessário, as massas
populares? Tais opiniões e atitudes mostram que a política de
compromisso com os «dissidentes do regime» a política de salvação
da «arquitectura social da nação» e de «defesa da ordem contra a
subversão», a política de conservação das estruturas do Estado
actual, é dirigida contra a classe operária e as vastas massas
trabalhadoras, é dirigida contra uma transformação verdadeiramente
democrática da sociedade portuguesa.
5.
Também
antifascistas que se pronunciem por um Portugal democrático e
independente, mesmo pelo socialismo, tomam em relação ao problema
do Estado posição semelhante à daqueles que pretendem perpetuar a
«ordem» dos monopólios para além do termo da ditadura fascista.
Não nos referimos aqui a alguns que se intitulam «socialistas
democráticos», mas cuja acção política não é o melhor atestado
dos seus desejos de socialismo e de democracia. Referimo-nos agora a
alguns que em numerosas ocasiões têm mostrado a sua aspiração a
um Portugal democrático libertado do domínio dos monopólios dos
grandes senhores da terra, do imperialismo estrangeiro. A posição
que estes antifascistas assumem em relação ao problema do Estado
não traduz evidentemente a intenção de assegurar a defesa dos
interesses monopolistas. Mas traduz gravíssimas ilusões.
Essas
ilusões, juntando-se à defesa da «arquitectura social da Nação»
pelos sectores atrás referidos, têm influência negativa nas forças
políticas e nas massas populares, tendendo a apagar no seu espírito
a consciência do que representa o Estado fascista e da necessidade a
sua destruição. Qualquer que fosse a via para o derrubamento do
fascismo, tais ilusões, a manterem-se e a predominarem no movimento
democrático, seriam susceptíveis de comprometer a vitória do povo
português no dia em que ponha termo à ditadura fascista. Daí a
necessidade de alertar contra os seus perigos. Segundo alguns,
bastaria a formação dum governo de homens progressivos para
assegurar a realização dum política progressiva. Se numa
conjuntura política determinada (que ninguém explica qual seria)
ficassem à frente dos ministérios homens decididos a realizar
reformas sociais profundas, estas estariam por esse mesmo facto
asseguradas. Tal a primeira grande ilusão, que prejudica a
apreciação do processo revolucionário, deforma as perspectivas do
movimento democrático e faz esquecer os objectivos fundamentais da
revolução antifascista.
Não
são apenas argumentos teóricos que mostram a sua fragilidade. A
história do movimento revolucionário ensina que, se a máquina do
Estado em que um governo se apoia está dominada pelas classes contra
as quais o mesmo governo ou alguns dos seus membros pretendem em
qualquer momento realizar uma política, essa mesma máquina do
Estado (isto é o exército, as forças repressivas, os tribunais, a
burocracia) sobrepõe-se ao governo e impede a sua acção, seja
sabotando a aplicação dos decretos e decisões do governo, seja
forçando remodelações ministeriais, seja ainda inspirando,
apoiando ou servindo golpes de palácio ou putsche que afastem o
governo e coloquem outro no seu lugar. Tanto em países capitalistas
desenvolvidos, como em países recém-libertados da submissão
nacional ou colonial, a história recente apresenta sucessivos
exemplos comprovativos desta realidade. Cite-se porém apenas a
experiência da revolução russa, uma vez que é esse o tema deste
artigo.
Falando
da revolução de Fevereiro de 1917, Lénine mostrava como a
manutenção do aparelho do Estado impedia a acção dos próprios
ministros mencheviques e socialistas-revolucionários. Salientando
que «mesmo nestes ministérios todo o aparelho administrativo
continuou a ser o velho, e ele entravava todo o trabalho», Lénine
desfazia o logro espalhado nas massas populares segundo o qual a
participação de ministros «socialistas» no governo seria
suficiente para assegurar uma política «socialista». «Uma mudança
de ministros significa muito pouco» – sublinhava Lénine – «pois
todo o trabalho administrativo real está nas mãos de um exército
gigantesco de funcionários (…) impregnado até à medula de um
espírito antidemocrático, está ligado por milhares e milhões de
fios aos latifundiários e à burguesia, dependendo deles de todas as
formas». E concluía: «Tentar levar a cabo, por meio deste aparelho
de Estado, transformações tais como a abolição da propriedade
latifundiária da terra sem indemnização ou o monopólio dos
cereais, etc., é a maior das ilusões, o maior engano de si próprio
e o engano do povo».
Nos
nossos dias e no nosso país, enganam-se também a si próprios e,
queiram ou não queiram, enganam o povo aqueles que afirmam que a
formação dum governo constituído por democratas, socialistas,
mesmo comunistas, asseguraria, por si só, a realização duma
política democrática, sem que para isso se tornasse necessária a
destruição do aparelho do Estado organizado pelos fascistas.
Alguns, reconhecendo a dificuldade, julgam descobrir a solução ao
imaginarem uma redistribuição dos cargos, com demissões dos
fascistas mais notórios dos lugares mais responsáveis e a nomeação
em sua substituição de «homens de confiança». Nem se trata de um
descoberta nem de uma solução. Tapando o buraco com uma tábua
furada, à primeira ilusão acrescentam uma segunda.
Tal
«solução» é a velha solução das «revoluções» burguesas e
pequeno burguesas, em que os partidos, que se substituíam no poder,
multiplicavam nomeações e redistribuições de cargos. Em Portugal,
foi o processo habitual do partidos que se sucediam no governo, tanto
no tempo da monarquia constitucional, como no da república
parlamentar. Diversos políticos se gabaram de ter cansado os braços
no primeiro dia de governo a assinar demissões e nomeações, E
entretanto nos mais dos casos de pouco lhes valia o expediente. Tal
«solução» pode ser viável (embora nem sempre o seja), quando se
não trata de verdadeiras revoluções, quando se não trata de
alterar a «arquitectura social da Nação», mas apenas de mudar
equipas burguesas, por virtude do jogo de interesses e rivalidades de
grupos e camadas da burguesia. Mas, quando se trata de revoluções
que alteram a natureza de classe da política governamental, então a
redistribuição dos cargos é insuficiente para que o aparelho do
Estado assegure a realização pelo governo das reformas ou medidas
revolucionárias que se impõem.
Falando
ainda da revolução russa de Fevereiro de 1917, Lénine notava como
«tanto em cima como em baixo», os cargos de funcionários se haviam
tornado o espólio de kadetes, mencheviques e
socialistas-revolucionários. As reformas que se impunham nem por
isso foram realizadas. Não considerando de momento a via para o
derrubamento do fascismo, se admitíssemos que, posto fim à ditadura
fascista, se instalava no poder um governo democrático que se
limitasse a «liberalizar» o aparelho do Estado fascista e a
«redistribuir» os cargos, que aconteceria? Das duas uma: Ou tal
governo pretendia realizar uma política realmente democrática,
realizar as reformas indispensáveis para assegurar o progresso
social, atingir as forças sociais e políticas reaccionárias, e
nesse caso o aparelho do Estado sabotaria e impediria de facto a
realização de tal política e seria, caso necessário, um
instrumento da contra-revolução. Ou tal governo acabava por trair a
sua missão, renunciando a uma política democrática e aceitando as
imposições do capital financeiro e do aparelho do Estado que nunca
deixara de servi-lo. E então? Então tão pouco seriam estáveis as
«liberdades». É de prever que as classes trabalhadoras
manifestariam a sua indignação, exigiriam do governo a satisfação
das suas aspirações; e que o governo, apesar de «democrático» ou
mesmo «socialista», apoiando-se no aparelho do Estado e agora
apoiado por este, responderia com esquivas, com medidas demagógicas
e finalmente com a repressão. A agudização da luta de classes
levaria a equipa governante, com medo da revolução, a reforçar o
aparelho repressivo. E, se em qualquer momento essa equipa não se
mostrasse à altura da sua tarefa como defensora dos grupos
monopolistas, dos latifundiários, dos colonialistas, do imperialismo
estrangeiro, todos estes utilizariam a máquina do Estado, que lhes
foram «conquistada» mas nunca verdadeiramente arrebatada, para
formar um governo mais fiel aos seus interesses e mais «competente»
na sua defesa. A reacção, a contra-revolução, mesmo o fascismo,
passariam de novo à ofensiva.
As
forças democráticas portuguesas devem trabalhar para que tais
situações se não venham a verificar. Devem ter perfeitamente clara
a ideia de que, depois de derrubado o fascismo, nenhuma política
democrática poderá ser levada a cabo em Portugal, nenhumas reformas
sociais profundas poderão ser realizadas, o poder dos monopólios e
latifundiários não poderá ser liquidado, nenhuma garantia poderá
haver contra nova ofensiva vitoriosa da reacção e do fascismo, se o
aparelho do Estado for apenas conquistado, remodelado e liberalizado.
É um absurdo pensar que uma revolução pode realizar-se apoiada no
aparelho do Estado das classes contra as quais essa mesma revolução
é dirigida.
6.
Se
a revolução antifascista é considerada, não como a substituição
da equipa governante fascista ao serviço dos monopólios por uma
equipa liberal igualmente ao serviço dos monopólios, não como a
precária subida ao poder de homens progressistas sem os meios de
realizar uma política progressiva, mas como a abolição do poder
dos monopólios e latifundiários, a sua expulsão do poder, a
destruição das bases sociais do fascismo, a implantação dum
regime democrático, a satisfação das aspirações mais sentidas
dos trabalhadores, dos camponeses, dos intelectuais, das camadas
sociais exploradas e oprimidas durante 40 anos de fascismo, – então
a posição em relação ao problema do Estado tem de ser
necessariamente diversa. Então tem de concluir-se que não basta
tomar conta do aparelho do Estado. É necessário destruir a
«organização da violência» o «poder especial de repressão»
que os monopólios, os latifundiários, os sectores mais
reaccionários da burguesia, criaram e organizaram cuidadosamente ao
longo de dezenas de anos para seu uso e sua defesa. É necessário
construir um aparelho do Estado capaz de assegurar a realização dos
objectivos políticos, sociais, económicos e culturais da revolução
antifascista, capaz de esmagar a resistência (que não deixará de
ser encarniçada) das classes desalojadas do poder, capaz de defender
o novo regime das tentativas da contra-revolução e mesmo de uma
eventual intervenção estrangeira. Sem tal Estado, a democracia não
será viável em Portugal.
O
Partido Comunista Português, no seu programa, define a revolução
antifascista como uma revolução democrática e nacional, cujos oito
objectivos fundamentais são: 1.º Destruir o Estado fascista e
instaurar um regime democrático; 2.º Liquidar o poder dos
monopólios e promover o desenvolvimento económico geral; 3.º
Realizar a Reforma Agrária, entregando a terra a quem a trabalha;
4.º Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em
geral; 5.º Democratizar a instrução e a cultura; 6.º Libertar
Portugal do imperialismo; 7.º Reconhecer e assegurar aos povos das
colónias portuguesas o direito à imediata independência; 8.º
Seguir uma política de paz e amizade com todos os povos (Cap. I).
O
Programa do PCP considera que, sem a realização de todos estes
objectivos, a revolução democrática e nacional não estará
acabada e não estará assegurado o desenvolvimento democrático e
independente da sociedade portuguesa. Mas sublinha que a «instauração
das liberdades democráticas, a destruição do Estado fascista e a
sua substituição por uma Estado democrático, constituem um
objectivo central da revolução democrática e nacional para a
realização dos seus outros objectivos». (Cap. I, 1.º).
Entre
as medidas indicadas no Programa do PCP contam-se: a nacionalização
dos bancos e grandes empresas monopolistas nas minas, na indústria,
nos transportes e comunicações (Cap. I, 2,º 1); a nacionalização
de empresas monopolistas estrangeiras (Cap. I, 6.º, 1); a Reforma
Agrária (Cap. I, 3.º, 1 e 2); a reforma tributária instituindo
impostos fortemente progressivos (Cap. I, 2.º, 8); a expropriação
dos prédios urbanos pertencentes ao capital monopolista (Cap. I,
4.º, 7); etc. Estas e outras reformas e medidas nunca poderiam ser
realizadas se o governo democrático se apoiasse numa máquina do
Estado organizada precisamente para defender os interesses das
classes por elas atingidas. «O Estado fascista (as forças armadas,
a polícia, os tribunais, o aparelho governamental burocrático)» –
diz o Programa do Partido – «é o instrumento da opressão exercida
pela burguesia monopolista e pelos latifundiários sobre as vastas
massas da população (…) A máquina do Estado fascista nunca
poderia servir a democracia. As forças revolucionárias não se
podem limitar a tomar conta da máquina do Estado fascista, para
utilizá-la pronta como está, introduzindo-lhe apenas modificações
e substituindo funcionários. A primeira tarefa das forças
revolucionárias é destruir o Estado fascista e substituí-lo por um
Estado democrático, ao serviço do povo, ao serviço da revolução
democrática e nacional». (Cap. I, 1.º)
Quaisquer
que sejam as circunstâncias em que a ditadura fascista venha a ser
derrubada, as forças democráticas e as massas populares, tanto no
decurso do processo revolucionário como após o derrubamento do
fascismo, não podem perder de vista um momento que seja esta sua
«primeira tarefa». A situação nacional, a evolução política,
as experiências da luta, as características do Estado fascista
indicam que o derrubamento do fascismo exigirá uma luta
revolucionária aguda, uma insurreição popular. A parte do aparelho
do Estado fascista que não for destruída no decurso do processo
insurreccional deve ser destruída urgentemente, sem perda de tempo,
logo após. Se isso não foi feito, não só não poderá ser
realizada uma política democrática, como a contra-revolução não
tardará.
Para
construir um Portugal Democrático e Independente é necessário que
os órgãos do poder se baseiem na vontade popular e liguem
constantemente a sua acção às aspirações das classes e camadas
laboriosas. É necessário que as forças armadas e de segurança, os
serviços judiciais, o aparelho burocrático, sejam organizados para
a defesa da revolução. É necessário que as massas populares
intervenham activamente em toda a vida nacional, desenvolvendo
amplamente a sua energia criadora. É necessário que o povo
português se torne de facto senhor do seu destino. Tudo isto
significa: é necessário organizar um novo aparelho do Estado
profundamente democrático.
A
teoria marxista-leninista do Estado é a única que dá, não apenas
à classe operária, mas a quaisquer forças revolucionárias, uma
base científica para resolverem os problemas práticos da conquista
do poder, da organização dos seus órgãos, da sua defesa e da sua
consolidação. As experiências da Revolução de Outubro conservam
toda a sua actualidade. Nas vésperas de Outubro, vivendo
clandestinamente na cabana de Razliv e escrevendo
no cepo duma árvore, Lénine apontava a acção a empreender em
relação ao Estado, como condição necessária para a vitória.
Esse exemplo deve estar presente no nosso espírito.
Forças
democráticas que pretendam representar um papel dirigente na
revolução antifascista têm o dever de definir, e já, uma
orientação correcta em relação ao problema do Estado, pois erros
e ilusões poderão comprometer ou anular tragicamente o grande êxito
da revolução e abrir passo à contra-revolução. O Partido
Comunista, partido do proletariado, não só procurará dar a sua
contribuição teórica para a compreensão do problema como
empregará incansavelmente os seus esforços para que a classe
operária e as massas, na acção revolucionária, decidam na prática
a questão do Estado, que certos chefes não entendem ou não querem
entender. O sucesso da revolução antifascista, a construção dum
Portugal democrático, assim o exige.
Sem comentários:
Enviar um comentário