terça-feira, 26 de março de 2013

Artigos de Opinião | Manuel Gusmão - Cultura e Ideologia (*)


Quando Marx, em O Capital, analisa o processo de trabalho, «antes de mais, independentemente de qualquer forma social determinada», mas já supondo uma forma que pertence exclusivamente ao homem, considera como momentos simples e abstractos desse processo «a actividade conforme o objectivo, ou o próprio trabalho, o seu objecto e o seu meio. Estes três momentos entram em relações de interdependência e o processo é basicamente o de uma múltipla transformação – o objecto de trabalho é transformado num outro objecto, o produto. O processo, repetindo-se, pode vir a transformar-se pela descoberta e incorporação de novos meios e instrumentos e, finalmente, o trabalhador torna-se em acto naquilo que apenas era em potência – «força de trabalho actuante, operário».


Este é um modelo antropológico de longo alcance na compreensão do trabalho humano, que podemos ver concretizar-se em diferentíssimos tipos de actividade. Concebido para descrever a produção material, não só se revelará operativo para descrever a produção de ideias, representações e valores, no que ela tem de específico, mas para compreendermos que essa especificidade não apaga nela a existência de processos materiais de produção e a sua implicação de meios imateriais, de objectos ideais e de produtos espirituais.


Por isso, quando nos referimos à cultura como um conjunto de actividades ou práticas, que usam meios e instrumentos de produção, circulação e recepção, para produzir artefactos ou obras, que transportam consigo representações e valores, e através das quais os indivíduos, os grupos sociais e as sociedades procuram dar sentido à vida e ao mundo, estamos a verificar a operatividade do modelo construído por Marx, a dar conta do nosso património teórico, e a assimilar o que tem sido a reflexão experimentada ou a experiência reflectida e elaborada pelo nosso próprio Partido no campo da cultura.


Quando não nos limitamos a aplicar a noção de cultura aos artefactos ou obras nem às representações e valores que, nelas e através delas, se comunicam nós estamos a fazer várias coisas ao mesmo tempo:


  1. Estamos a dar conta de que as obras da cultura, os produtos culturais não caem do céu, não são a «coisa» de uma inteligência ou de uma sensibilidade, separadas das outras faculdades humanas, nem em absoluto independentes da produção e reprodução social da vida.
  1. A tornar claro porque é que as ideias dominantes são as das classes dominantes: porque é dominante a sua posição na esfera económica e disso faz parte a maneira como se apropriam dos principais aparelhos e instituições, meios e instrumentos de produção, difusão e recepção culturais.
  1. Estamos a preparar o caminho para a compreensão de que a democratização cultural não se pode nem deve esgotar na democratização do acesso à fruição cultural, antes tem de estender-se ao acesso à criação, o que implica a democratização das actividades e do uso desses meios e instrumentos. Por isso, também, quando intervimos culturalmente a partir do movimento associativo ou das autarquias ou, mais tarde ao mais cedo, a partir do poder de Estado, a nossa intervenção na democracia cultural, tem como orientação estratégica: a participação na criação cultural das populações, com os colectivos e os criadores individuais.
O universo da cultura diferencia-se técnica e disciplinarmente em várias regiões de fronteiras difusas, e também elas internamente diferenciadas: as artes e as ciências, a filosofia, o direito, a religião, a moral, a educação e o ensino, a comunicação social.


A cultura no sentido amplo em que a entendemos aproxima-se, então, do que Marx designou como «consciência social» e como «ideologia». Mas há diversamente, nas ciências e nas artes, ou mesmo na filosofia, algo que não é totalmente subsumível por essas noções, algo que determina a especificidade dessas actividades. Não se trata de comprometer o poder explicativo e interpretativo do materialismo que estuda as categorias da consciência social, entrelaçadas com as estruturações do ser social. Mas é necessário dialectizar plenamente as relações que permitem atribuir ao ser social o primado sobre as representações da consciência social, sem entretanto cairmos em qualquer forma de dualismo. A própria admissão da possibilidade do conhecimento científico ser um conhecimento efectivo do mundo e da vida implica que nem toda a consciência social seja uma falsa consciência.


Por outro lado, no que ao nosso tema mais interessa, as artes correspondem ao que Marx em 1844 considerava, como também especificamente humano – é que o homem sabe aplicar em toda a parte a medida inerente ao objecto, por isso, o homem dá forma também segundo as leis da beleza. Por isso, Marx considerava que é a música que desperta o sentido musical do homem. E continuava: Não só os 5 sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, apenas advêm pela existência do seu objecto, pela natureza humanizada.


A formação dos 5 sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje.


As diferentes regiões da cultura  são diversamente determinadas pela sociedade na qual se processam e mesmo que em alguns casos, em última instância, pelas formas económicas em que os homens produzem, consomem e trocam. Nesse sentido, os seus meios e objectos de trabalho, bem como os seus produtos são tão transitórios e históricos como as relações sociais que exprimem. Entretanto Marx e Engels insistiram na margem, maior ou menor, de autonomia relativa das diferentes regiões da consciência social ou da ideologia. Essa autonomia é diferente consoante a especificidade técnica da região, a sua maior ou menor distância em relação ao mundo da produção económica. Assim, a política e o direito estão, tendencialmente, mais perto da expressão das relações económicas e sociais, do que a filosofia ou a religião. A autonomia relativa advém do peso da história das formas herdadas, no trabalho criador de uma dada esfera cultural, do tipo e profundidade das mediações à qual é submetida a determinação económica. Certas representações e valores mantêm-se muitas vezes como sobrevivências, quando desapareceram já as condições materiais, que lhes deram origem e a que corresponderam.


Esta sobrevivência é negativa quando exprime a obstinação de certos preconceitos conservadores e elitistas em situações que esperaríamos terem-nos erradicado. Mas, por exemplo, a sobrevivência de certas obras de arte às condições da sua produção testemunha do carácter transhistórico do trabalho concreto que as produziu e de uma certa perenidade das formas de criação segundo a beleza. Embora as ideias de beleza sejam seguramente transitórias e históricas.


A autonomia relativa da cultura manifesta-se e é legível na contradição entre uma determinada relação de forças numa determinada zona cultural e as condições criadas do ponto de vista económico, político e social, ou na possibilidade da retroacção de uma dada esfera da cultura sobre as suas condições materiais, apressando ou retardando o processo da sua evolução.


No relatório da actividade do Comité Central ao VI Congresso do PCP, o camarada Álvaro Cunhal observava: Pelo suborno, pela ameaça, pelas perseguições, pelo encerramento de instituições culturais, pela guerra à ciência, à literatura, ao cinema, às artes plásticas e a todas as manifestações culturais, pelo pagamento a peso de oiro da inteligência venal, a ditadura procurou criar um «escol» intelectual fascista e aniquilar o movimento progressivo dos intelectuais. Não o conseguiu. E concluía: Por muito surpreendente que pareça/ sob uma ditadura fascista, as ideias da democracia e do progresso dominam o panorama intelectual português.


É esta autonomia relativa, enquanto possibilidade de contradição e retroacção da cultura, que fundamenta a importância que atribuímos à democracia cultural no quadro da luta pela democracia avançada e pelo socialismo. É esta autonomia relativa, enquanto garantia da cultura como manifestação de liberdade e de transformação, enquanto condição de possibilidade e trabalho de emancipação, que é hoje crescentemente comprimida e reduzida em Portugal e no mundo do capitalismo e do imperialismo.


No mundo contemporâneo a cultura é crescentemente atravessada pela economia e pelas relações económicas do imperialismo. A sua política «cultural», sob a capa muito neoliberal de não haver nenhuma, joga-se efectivamente em torno de duas reduções da autonomia relativa da cultura: a sua redução a um sector da produção para um mercado e à gestão de um espectáculo, em qualquer dos casos acumulando o lucro, em termos económicos e ideológicos. O papel destrutivo do capitalismo dá-se aqui a conhecer enquanto mercadorização e alienação. Mercadorização de todas as relações sociais e humanas, privatização e mercadorização do ser social, e não só já da terra, enquanto primeiro objecto e meio de trabalho dos humanos, mas enquanto nosso corpo não-orgânico, e das águas no planeta. Alienação, quando tudo o que há de íntimo ou público, da vida pessoal à acção política, nos é expropriado, exposto perante nós, transformado em espectáculo, que nos impõe a posição de espectadores.


E contudo, ela move-se. Continua a mover-se. Há um artista plástico que cerziu a sua experiência de viagens suburbanas num conjunto de pequenas narrativas e grafismos e estuda agora as possibilidades de as expor em troços do percurso rodoviário e ferroviário que ele conheceu. Há um conjunto de jovens que se reúne para montar uma peça e, se der, depois outra, primeiro uma coisa do Redol, depois outra de Shakespeare, ou vice-versa. Há um homem que foi operário e agora escreve as imagens do trabalho como pequenos gestos da luz. Há aquela comissão que organizou a ida de um grupo musical à sua colectividade e preparou ao mesmo tempo a ida a essa sessão de um grupo de jovens que virão mais tarde a formar um outro grupo musical. Há aqueles avós que vão, eles e elas, à biblioteca municipal contar histórias e ensinar gestos das artes de fazer, à geração dos seus netos. Há aqueles dois miúdos, um negro africano e um branco que, numa festa do município, cantam uma música rap, com uma letra que eles fizeram e fala de violência e amizade. Há a secção de cinema de uma associação de estudantes que organiza uma pequena mostra de cinema independente e, ao mesmo tempo, abre um atelier de vídeo e um concurso em que apoia a produção de curtas-metragens vídeo entre os seus associados. Há aquela jovem investigadora científica que prepara a sua tese  e, para além da sua vida pessoal, inventa tempo para integrar a Associação dos bolseiros de investigação científica e lutar por uma política democrática para a ciência. Há aquela animadora cultural de uma autarquia que cria com grupos de jovens e alguns escritores uma espécie de atelier de escrita em que todos escrevem e discutem o que uns e outros escreveram. Há aquela professora de educação visual que estimula entre os seus alunos, a realização de projectos multimedia.


E há outros, muitos mais, como estes e diferentes destes. E, há o PCP que, com eles e muito para além deles, sendo o partido político do proletariado, o partido da classe operária e de todos os trabalhadores portugueses, é também, pela sua história passada e presente, uma organização sócio-cultural sem paralelo no nosso país. Uma organização que, enquanto tal, produz, recebe e põe em comum a cultura que é diversa, inesperada e comum. Um partido que resiste e organiza a resistência também no plano da cultura, porque a resistência e a esperança são hoje o cultivo do futuro.


E porque essa cultura é necessária, é necessário que a Greve Geral de 30 de Maio seja um êxito dos trabalhadores portugueses. Um êxito da liberdade contra uma cultura da arrogância anti-operária, antipopular e antidemocrática; uma vitória do Trabalho contra uma cultura de destruição do aparelho produtivo e dos direitos dos portugueses; uma vitória da fraternidade e da solidariedade, contra uma cultura do salve-se quem puder, da intimidação e da criminalização do protesto e da luta.


(*) Intervenção no Encontro Nacional do PCP sobre Cultura, em 26 de Maio de 2007.


(Revista "O Militante", Nº 290 - Set/Out 2007)

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