Quando
Marx, em O Capital, analisa o processo de trabalho, «antes de mais,
independentemente de qualquer forma social determinada», mas já
supondo uma forma que pertence exclusivamente ao homem, considera
como momentos simples e abstractos desse processo «a actividade
conforme o objectivo, ou o próprio trabalho, o seu objecto e o seu
meio. Estes três momentos entram em relações de interdependência
e o processo é basicamente o de uma múltipla transformação – o
objecto de trabalho é transformado num outro objecto, o produto. O
processo, repetindo-se, pode vir a transformar-se pela descoberta e
incorporação de novos meios e instrumentos e, finalmente, o
trabalhador torna-se em acto naquilo que apenas era em potência –
«força de trabalho actuante, operário».
Este é um
modelo antropológico de longo alcance na compreensão do trabalho
humano, que podemos ver concretizar-se em diferentíssimos tipos de
actividade. Concebido para descrever a produção material, não só
se revelará operativo para descrever a produção de ideias,
representações e valores, no que ela tem de específico, mas para
compreendermos que essa especificidade não apaga nela a existência
de processos materiais de produção e a sua implicação de meios
imateriais, de objectos ideais e de produtos espirituais.
Por isso, quando
nos referimos à cultura como um conjunto de actividades ou práticas,
que usam meios e instrumentos de produção, circulação e recepção,
para produzir artefactos ou obras, que transportam consigo
representações e valores, e através das quais os indivíduos, os
grupos sociais e as sociedades procuram dar sentido à vida e ao
mundo, estamos a verificar a operatividade do modelo construído por
Marx, a dar conta do nosso património teórico, e a assimilar o que
tem sido a reflexão experimentada ou a experiência reflectida e
elaborada pelo nosso próprio Partido no campo da cultura.
Quando não nos
limitamos a aplicar a noção de cultura aos artefactos ou obras nem
às representações e valores que, nelas e através delas, se
comunicam nós estamos a fazer várias coisas ao mesmo tempo:
- Estamos a dar conta de que as obras da cultura, os produtos culturais não caem do céu, não são a «coisa» de uma inteligência ou de uma sensibilidade, separadas das outras faculdades humanas, nem em absoluto independentes da produção e reprodução social da vida.
- A tornar claro porque é que as ideias dominantes são as das classes dominantes: porque é dominante a sua posição na esfera económica e disso faz parte a maneira como se apropriam dos principais aparelhos e instituições, meios e instrumentos de produção, difusão e recepção culturais.
- Estamos a preparar o caminho para a compreensão de que a democratização cultural não se pode nem deve esgotar na democratização do acesso à fruição cultural, antes tem de estender-se ao acesso à criação, o que implica a democratização das actividades e do uso desses meios e instrumentos. Por isso, também, quando intervimos culturalmente a partir do movimento associativo ou das autarquias ou, mais tarde ao mais cedo, a partir do poder de Estado, a nossa intervenção na democracia cultural, tem como orientação estratégica: a participação na criação cultural das populações, com os colectivos e os criadores individuais.
O universo da
cultura diferencia-se técnica e disciplinarmente em várias regiões
de fronteiras difusas, e também elas internamente diferenciadas: as
artes e as ciências, a filosofia, o direito, a religião, a moral, a
educação e o ensino, a comunicação social.
A cultura no
sentido amplo em que a entendemos aproxima-se, então, do que Marx
designou como «consciência social» e como «ideologia». Mas há
diversamente, nas ciências e nas artes, ou mesmo na filosofia, algo
que não é totalmente subsumível por essas noções, algo que
determina a especificidade dessas actividades. Não se trata de
comprometer o poder explicativo e interpretativo do materialismo que
estuda as categorias da consciência social, entrelaçadas com as
estruturações do ser social. Mas é necessário dialectizar
plenamente as relações que permitem atribuir ao ser social o
primado sobre as representações da consciência social, sem
entretanto cairmos em qualquer forma de dualismo. A própria admissão
da possibilidade do conhecimento científico ser um conhecimento
efectivo do mundo e da vida implica que nem toda a consciência
social seja uma falsa consciência.
Por outro lado,
no que ao nosso tema mais interessa, as artes correspondem ao que
Marx em 1844 considerava, como também especificamente humano – é
que o homem sabe aplicar em toda a parte a medida inerente ao
objecto, por isso, o homem dá forma também segundo as leis da
beleza. Por isso, Marx considerava que é a música que desperta o
sentido musical do homem. E continuava: Não só os 5 sentidos, mas
também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos
(vontade, amor, etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade
dos sentidos, apenas advêm pela existência do seu objecto, pela
natureza humanizada.
A formação dos
5 sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje.
As
diferentes regiões da cultura são diversamente determinadas
pela sociedade na qual se processam e mesmo que em alguns casos, em
última instância, pelas formas económicas em que os homens
produzem, consomem e trocam. Nesse sentido, os seus meios e objectos
de trabalho, bem como os seus produtos são tão transitórios e
históricos como as relações sociais que exprimem. Entretanto Marx
e Engels insistiram na margem, maior ou menor, de autonomia relativa
das diferentes regiões da consciência social ou da ideologia. Essa
autonomia é diferente consoante a especificidade técnica da região,
a sua maior ou menor distância em relação ao mundo da produção
económica. Assim, a política e o direito estão, tendencialmente,
mais perto da expressão das relações económicas e sociais, do que
a filosofia ou a religião. A autonomia relativa advém do peso da
história das formas herdadas, no trabalho criador de uma dada esfera
cultural, do tipo e profundidade das mediações à qual é submetida
a determinação económica. Certas representações e valores
mantêm-se muitas vezes como sobrevivências, quando desapareceram já
as condições materiais, que lhes deram origem e a que
corresponderam.
Esta
sobrevivência é negativa quando exprime a obstinação de certos
preconceitos conservadores e elitistas em situações que
esperaríamos terem-nos erradicado. Mas, por exemplo, a sobrevivência
de certas obras de arte às condições da sua produção testemunha
do carácter transhistórico do trabalho concreto que as produziu e
de uma certa perenidade das formas de criação segundo a beleza.
Embora as ideias de beleza sejam seguramente transitórias e
históricas.
A autonomia
relativa da cultura manifesta-se e é legível na contradição entre
uma determinada relação de forças numa determinada zona cultural e
as condições criadas do ponto de vista económico, político e
social, ou na possibilidade da retroacção de uma dada esfera da
cultura sobre as suas condições materiais, apressando ou retardando
o processo da sua evolução.
No relatório da
actividade do Comité Central ao VI Congresso do PCP, o camarada
Álvaro Cunhal observava: Pelo suborno, pela ameaça, pelas
perseguições, pelo encerramento de instituições culturais, pela
guerra à ciência, à literatura, ao cinema, às artes plásticas e
a todas as manifestações culturais, pelo pagamento a peso de oiro
da inteligência venal, a ditadura procurou criar um «escol»
intelectual fascista e aniquilar o movimento progressivo dos
intelectuais. Não o conseguiu. E concluía: Por muito surpreendente
que pareça/ sob uma ditadura fascista, as ideias da democracia e do
progresso dominam o panorama intelectual português.
É esta
autonomia relativa, enquanto possibilidade de contradição e
retroacção da cultura, que fundamenta a importância que atribuímos
à democracia cultural no quadro da luta pela democracia avançada e
pelo socialismo. É esta autonomia relativa, enquanto garantia da
cultura como manifestação de liberdade e de transformação,
enquanto condição de possibilidade e trabalho de emancipação, que
é hoje crescentemente comprimida e reduzida em Portugal e no mundo
do capitalismo e do imperialismo.
No mundo
contemporâneo a cultura é crescentemente atravessada pela economia
e pelas relações económicas do imperialismo. A sua política
«cultural», sob a capa muito neoliberal de não haver nenhuma,
joga-se efectivamente em torno de duas reduções da autonomia
relativa da cultura: a sua redução a um sector da produção para
um mercado e à gestão de um espectáculo, em qualquer dos casos
acumulando o lucro, em termos económicos e ideológicos. O papel
destrutivo do capitalismo dá-se aqui a conhecer enquanto
mercadorização e alienação. Mercadorização de todas as relações
sociais e humanas, privatização e mercadorização do ser social, e
não só já da terra, enquanto primeiro objecto e meio de trabalho
dos humanos, mas enquanto nosso corpo não-orgânico, e das águas no
planeta. Alienação, quando tudo o que há de íntimo ou público,
da vida pessoal à acção política, nos é expropriado, exposto
perante nós, transformado em espectáculo, que nos impõe a posição
de espectadores.
E contudo, ela
move-se. Continua a mover-se. Há um artista plástico que cerziu a
sua experiência de viagens suburbanas num conjunto de pequenas
narrativas e grafismos e estuda agora as possibilidades de as expor
em troços do percurso rodoviário e ferroviário que ele conheceu.
Há um conjunto de jovens que se reúne para montar uma peça e, se
der, depois outra, primeiro uma coisa do Redol, depois outra de
Shakespeare, ou vice-versa. Há um homem que foi operário e agora
escreve as imagens do trabalho como pequenos gestos da luz. Há
aquela comissão que organizou a ida de um grupo musical à sua
colectividade e preparou ao mesmo tempo a ida a essa sessão de um
grupo de jovens que virão mais tarde a formar um outro grupo
musical. Há aqueles avós que vão, eles e elas, à biblioteca
municipal contar histórias e ensinar gestos das artes de fazer, à
geração dos seus netos. Há aqueles dois miúdos, um negro africano
e um branco que, numa festa do município, cantam uma música rap,
com uma letra que eles fizeram e fala de violência e amizade. Há a
secção de cinema de uma associação de estudantes que organiza uma
pequena mostra de cinema independente e, ao mesmo tempo, abre um
atelier de vídeo e um concurso em que apoia a produção de
curtas-metragens vídeo entre os seus associados. Há aquela jovem
investigadora científica que prepara a sua tese e, para além
da sua vida pessoal, inventa tempo para integrar a Associação dos
bolseiros de investigação científica e lutar por uma política
democrática para a ciência. Há aquela animadora cultural de uma
autarquia que cria com grupos de jovens e alguns escritores uma
espécie de atelier de escrita em que todos escrevem e discutem o que
uns e outros escreveram. Há aquela professora de educação visual
que estimula entre os seus alunos, a realização de projectos
multimedia.
E há outros,
muitos mais, como estes e diferentes destes. E, há o PCP que, com
eles e muito para além deles, sendo o partido político do
proletariado, o partido da classe operária e de todos os
trabalhadores portugueses, é também, pela sua história passada e
presente, uma organização sócio-cultural sem paralelo no nosso
país. Uma organização que, enquanto tal, produz, recebe e põe em
comum a cultura que é diversa, inesperada e comum. Um partido que
resiste e organiza a resistência também no plano da cultura, porque
a resistência e a esperança são hoje o cultivo do futuro.
E porque essa
cultura é necessária, é necessário que a Greve Geral de 30 de
Maio seja um êxito dos trabalhadores portugueses. Um êxito da
liberdade contra uma cultura da arrogância anti-operária,
antipopular e antidemocrática; uma vitória do Trabalho contra uma
cultura de destruição do aparelho produtivo e dos direitos dos
portugueses; uma vitória da fraternidade e da solidariedade, contra
uma cultura do salve-se quem puder, da intimidação e da
criminalização do protesto e da luta.
(*) Intervenção
no Encontro Nacional do PCP sobre Cultura, em 26 de Maio de 2007.
(Revista "O Militante", Nº 290 - Set/Out 2007)
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