O
Partido Comunista Português (PCP) foi fundado em 1921. Obrigado à
clandestinidade na sequência do golpe militar (1926) de Gomes da
Costa, que abriu o caminho para a ditadura de Salazar, o partido foi
reorganizado por Bento Gonçalves (1902-1942), seu primeiro
secretário-geral, assassinado pelo salazarismo no campo de
concentração do Tarrafal.
Na
história do PCP, a figura de Álvaro Cunhal é absolutamente
central. De fato, o PCP que se constituiu como a força mais
importante na longa resistência democrática ao regime fascista de
Salazar e na vanguarda mais consequente do processo da “Revolução
dos Cravos” (25 de abril de 1974) foi construído por um coletivo
em que a liderança de Cunhal emergiu e se consolidou por décadas,
sem quaisquer contestações por parte da militância de base –
esta reconheceu no secretário-geral de 1961 a 1992 (depois,
tornou-se Presidente do Conselho Nacional do PCP) a coragem pessoal,
a firmeza ideológica e a qualificação teórica que, enfim,
tornaram-no o próprio símbolo do comunismo lusitano. Compreende-se,
pois, que o Comitê Central do PCP tenha agendado para 2013, ano do
centenário de nascimento de Cunhal, uma série de eventos e
atividades para evocar o notável “filho adotivo do proletariado
português”.
A
luta por um partido marxista-leninista
Toda
a vida de Cunhal – nascido a 10 de novembro de 1913 e falecido a 13
de junho de 2005 (pouco depois da morte de outro grande nome da
“Revolução dos Cravos”, o general Vasco Gonçalves, aos 84
anos) – foi dedicada ao PCP, no qual ingressou, como líder
estudantil, nos inícios dos anos 1930.
Articulador
da juventude comunista, Cunhal integra a direção do PCP a partir de
1936. Passa com ímpar dignidade pelas prisões fascistas em 1937 e
1940. Entre 1940 e 1941, protagoniza um novo processo de
reorganização do PCP: tratou-se mesmo de uma autêntica refundação
do partido, no marco da qual se constituiu um sólido núcleo
dirigente e se estabeleceu a estrutura clandestina que o fascismo
salazarista jamais pôde destruir. Foi Cunhal cérebro e mãos desse
processo: teórico e militante, sua intervenção intelectual e sua
corajosa prática política conferiram nova dinâmica ao PCP, tornado
desde então, na mais estrita acepção, um partido
marxista-leninista. Por isto, já em meados da década de 1940 seus
camaradas reconheciam o caráter singular da personalidade do líder
que se afirmava – caráter em que se conjugavam a qualificação
teórica e o talento organizativo.
Preso
em 1949, transformou seu processo judicial em tribuna anti-fascista.
Condenado, passou 11 anos nos cárceres salazaristas, dos quais 8 em
isolamento – mas encontrou meios e modos de estudar e desenvolver
suas concepções teóricas e aperfeiçoar seus dotes artísticos (no
desenho e na ficção literária). A 3 de janeiro de 1960, em
espetacular fuga coletiva organizada pelo PCP, escapou do Forte de
Peniche – e, após algum tempo na clandestinidade, rumou para o
exílio (URSS, França).
Exilado
até a “Revolução dos Cravos”, teve condições de aprofundar
sua análise da realidade de seu país – realmente, elaborou o que
se pode designar como uma teoria da revolução portuguesa – e, no
interior do partido (cujo Comitê Central elegeu-o para a secretaria
geral em 1961) e no movimento comunista internacional, consagrou-se
como o líder inconteste da resistência ao salazarismo. Após a
derrubada da ditadura fascista, participou como ministro em vários
dos governos provisórios da instauração democrática e o povo
português conferiu-lhe seguidos mandatos parlamentares.
No
curso dessas décadas, Cunhal travou um incessante combate em defesa
do caráter marxista-leninista do seu partido. A luta no plano
político-ideológico para preservar e consolidar o papel de
vanguarda do PCP foi, para ele, uma luta sem quartel. E uma luta em
duas frentes: contra os equívocos provindos de “desvios de
direita” contra as tentações aventureiras advindas de “desvios
de esquerda”. Exemplifiquemos essa luta com um dos seus mais
relevantes capítulos, o do combate aos “desvios de direita”.
A
crítica radical ao “desvio de direita”
Já
no IV Congresso do PCP, realizado em 1946, Cunhal – à base da
certeira compreensão de que a ditadura portuguesa era uma forma
particular e específica de regime fascista – defendera para a
derrubada do salazarismo o recurso a um “levantamento nacional”.
No curto prazo, porém, o partido deslizou para um posicionamento
(posteriormente designado como “política de transição”) que
secundarizava o empenho para organizar o “levantamento nacional”.
Na
passagem dos anos 1940 aos 1950, o partido foi profundamente golpeado
pela repressão – entre tais golpes conta-se a “queda” da casa
do Luso (25 de março de 1949), quando Cunhal, Militão Ribeiro e
Sofia Ferreira, membros do secretariado da direção central, são
feitos prisioneiros. A duras penas, o PCP recupera-se desses golpes
em meados da década de 1950. Mas, a partir de 1956, o partido ruma
novamente para posições similares às da “política de
transição”, com uma orientação que se vê reforçada pelo seu V
Congresso (1957). Tal orientação, que se manterá até 1960
(quando, recordemos, Cunhal e alguns companheiros evadem-se da prisão
e podem intervir na vida partidária), trará graves prejuízos ao
PCP e à resistência democrática portuguesa.
Com
efeito, a linha política traçada no V Congresso – já antecipada
por um documento do Comitê Central de maio de 1956 – abandona
completamente a estratégia do “levantamento nacional”, proposta
e defendida por Cunhal há uma década: ela se vê substituída por
uma orientação que prega uma “solução pacífica” para o fim
do salazarismo. Esta orientação – que, embora contestada por
alguns dirigentes e muitos militantes de base, manteve-se até 1960 –
deixou o partido a reboque da oposição liberal-burguesa e mesmo das
dissidências que afetaram o bloco de poder salazarista na crise de
1958-1959 (na sequência da candidatura de Humberto Delgado à
presidência da República). Afirmando que o regime experimentava um
intenso e irreversível processo de “desagregação”, o PCP
apostava no “afastamento de Salazar” mediante uma “solução
pacífica”, pendulando entre a via eleitoral e a via de um golpe
militar. Para apressar tal “solução”, o partido acenava com uma
“greve geral pacífica” que nunca preparou.
Com
a precipitação efetiva das lutas de classes e a movimentação
autônoma do proletariado urbano e rural (especialmente no Alentejo),
a orientação da direção do PCP não teve como resultado somente a
perda da influência do PCP no jogo político: desarmou amplamente o
seu aparelho clandestino frente às respostas repressivas do regime à
crise que este experimenta em 1958-1959 – novamente, a PIDE
assestou duros golpes no partido.
Isolado
na prisão de Peniche, Cunhal (que sequer foi informado do
encaminhamento do V Congresso) esteve à margem dessa orientação da
qual discordava por inteiro. Logo que se evadiu, atuou intensamente –
no plano ideológico e no plano organizativo – para revertê-la
radicalmente. Já num texto de dezembro de 1960 (“A tendência
anarco-liberal na organização do trabalho de direção”) indicava
as causas do fracasso da direção do PCP no nível da organização
clandestina. Mas é no texto divulgado em março de 1961 – “O
desvio de direita nos anos 1956/1959 (elementos de estudo)” – que
Cunhal analisa, frontal e profundamente, os danos ocasionados pela
orientação oficial vigente desde 1957.
Cunhal
começa por indicar que a adoção da “solução pacífica” pela
direção do PCP fundava-se numa transplantação mecânica –
completamente equivocada – para a realidade portuguesa das teses
oriundas do XX Congresso do PCUS (1956) acerca da possibilidade da
“via pacífica” da transição ao socialismo. Cunhal argumenta
que tais teses são válidas para muitos países, mas não para
Portugal: tais teses, enquanto dizem respeito à transição ao
socialismo, são estranhas à problemática portuguesa, uma vez que,
no contexto lusitano, a questão real é outra – em Portugal, não
se tratava de transitar para o socialismo: tratava-se de derrubar a
ditadura fascista e conquistar as liberdades políticas. Nestas
condições, a proposta da “solução pacífica” tanto revela um
mimetismo servil às teses do XX Congresso do PCUS quanto a
incapacidade para analisar a realidade portuguesa, a qual se afirmava
querer transformar.
A
incapacidade para operar “a análise concreta da realidade
concreta” (tal como Lenin caracterizava o marxismo) – que, neste
caso, mostra a ignorância do carácter fascista do regime
salazarista – leva o PCP a substituir o caminho revolucionário
para a conquista da democracia política (o “levantamento
nacional”) por um arremedo oportunista, o “afastamento de
Salazar” (exatamente a “solução pacífica”). Esta
substituição retira do partido a condição de vanguarda e
dirigente, desarma a militância proletária (urbana e rural) e
enfraquece a resistência democrática: processando-se a
“desagregação” da ditadura, o partido passa a jogar em ilusões
legalistas e constitucionais (sob um regime fascista!) e/ou no golpe
militar. Para Cunhal, a “desagregação” deve ser levada em
conta, mas ele afirma contundentemente que “um regime não cai pela
sua desagregação […], mas pela ação revolucionária das
massas”.
Se
se toma a “desagregação” como o principal elemento para a
derrota da ditadura fascista (e esta era a posição da direção do
PCP), a iniciativa revolucionária das massas é marginalizada e os
comunistas passam a desempenhar um papel secundário e lateral na
luta pela democracia. Ao longo do seu texto, Cunhal demonstra que
reside precisamente neste desvio de direita – consistente em
assumir e difundir ilusões legalistas sob o fascismo e em confiar em
alternativas golpistas – a causa das derrotas políticas e
orgânicas sofridas pelo partido nos anos 1956/1959 (e o demonstra
com o exame de inúmeros fatos da conjuntura portuguesa imediatamente
anterior e posterior à “farsa eleitoral” de 1958, assim como da
documentação do PCP). Na sua análise, aliás, Cunhal não
desconecta a atuação política do partido da estrutura
organizacional que a implementa: a orientação política que confia
na “desagregação” conduz ao “culto da espontaneidade” e
este fragiliza o partido na sua relação positiva com a sociedade e
em seu confronto com as forças da repressão – donde o
“liberalismo”, a “falta de vigilância” e a “facilidade na
promoção de quadros” que tiveram curso na estrutura clandestina
do PCP daqueles anos.
Em
síntese, Cunhal indica que a efetiva redução da influência do PCP
naqueles anos – bem como muito de suas perdas orgânicas –, sob a
orientação da “solução pacífica” (ultrapassado o partido
pela ação combativa das massas trabalhadoras), estava intimamente
ligada à incapacidade da direção para apreender o movimento social
real que se desenvolvia sob a aparência imediata da sociedade
portuguesa. Todo o seu argumento demonstra que os principais
problemas político-ideológicos que então afetaram o PCP deitavam
raízes na inépcia teórica dos dirigentes que conduziam o partido
no rumo à “solução pacífica” (de fato, no rumo da
direitização).
A
conclusão do seu argumento é cristalina:
Se
queremos que o Partido desempenhe o papel determinante que lhe cabe
na luta pela liberdade política, temos de expurgar do Partido as
concepções direitistas e oportunistas, que criaram fortes raízes a
partir de 1956.
Não
se trata de uma tarefa fácil. As concepções direitistas e
oportunistas foram a «linha» oficial do Partido durante vários
anos, foi dentro delas que se formaram militantes, enraizaram-se na
maneira de ver as coisas e em hábitos de trabalho, e não será
fácil varrê-las dum momento para o outro. Para varrê-las do
Partido, impõe-se um combate amplo, aberto, enérgico e persistente,
contra o desvio de direita que predominou nos anos 1956-59, impõe-se
que exponhamos ao sol da crítica as suas raízes ideológicas,
impõe-se que saibamos não apenas ganhar a concordância dos
militantes, mas esclarecê-los e convencê-los.
Logo
que saiu da prisão, Cunhal dedicou-se intensivamente, com outros
camaradas, à tarefa que não julgava fácil. Rapidamente, já em
meados dos anos 1960, seu combate resultou exitoso: no VI Congresso
(1965), sob sua liderança inconteste, o PCP superou o “desvio de
direita”, reatualizou a tese do “levantamento nacional” e
retomou a sua vocação – ser a vanguarda do proletariado
português. O informe de Cunhal a este congresso (Rumo
à vitória)
deu nova orientação à política do PCP, preparando-o adequadamente
para os confrontos decisivos que derivaram na derrubada do regime
fascista e na instauração democrática.
Líder
político, teórico e homem da cultura
O
peso de Cunhal na história do PCP é indiscutível e imenso: sua
intervenção organizativa imprimiu-lhe o caráter marxista-leninista
na verdadeira refundação (“reorganização”) de 1940/1941; seu
combate político-ideológico aos desvios direitistas e esquerdistas
nos anos 1960 garantiu que o partido se livrasse do oportunismo e
recusasse o aventureirismo; sob sua liderança, o PCP qualificou-se
como a principal força da resistência democrática e, depois do 25
de Abril, como a expressão das mais profundas aspirações nacionais
e democráticas. Com a sua atividade política apoiando-se no
reconhecimento do protagonismo das massas trabalhadoras e em sólidas
convicções teóricas, adquiridas e desenvolvidas em contínuos
estudo e pesquisa, Cunhal nada teve em comum com ocupantes de
secretaria-geral burocratizados e rotineiros.
Dissemos
já que Cunhal desenvolveu uma teoria da revolução portuguesa – e
a afirmativa não é gratuita. No conjunto de escritos de Cunhal, a
pesquisa da realidade portuguesa é constante – envolvendo da
investigação histórica (As
lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média)
a análises contemporâneas (Contribuição
para o estudo da questão agrária).
No citadoRumo
à vitória…
encontra-se a síntese de anos de estudo e da sua teoria de revolução
portuguesa.
Mas
Cunhal foi também um intelectual sofisticado – prova-o a sua
excelente tradução de O
rei Lear, de
Shakespeare. Foi, de fato, um homem do mundo da cultura. Artista
plástico, produziu uma notável série de gravuras. Suas reflexões
estéticas estão explicitadas em A
arte, o artista e a sociedade. A
sua obra de ficção, marcada pelo neo-realismo, é significativa:
Até
amanhã, camaradas, Cinco dias, cinco noites, A estrela de seis
pontas, Um risco na areia, A casa de Eulália, Fronteiras, Sala 3 e
outros contos e Lutas e vidas. Um conto.
A
rica e polifacética obra/personalidade de Álvaro Cunhal, como se
vê, desborda amplamente a dimensão estritamente política. As
comemorações do seu centenário de nascimento seguramente também
destacarão, para além da sua liderança, a magnitude da sua
contribuição à cultura.
*José
Paulo Netto é um destacado pensador marxista brasileiro. Doutor em
Serviço Social, professor emérito da ESS da UFRJ e autor, entre
outras publicações, de “Ditadura e Serviço Social - Uma análise
do Serviço Social no Brasil pós-64”, “Capitalismo Monopolista e
Serviço Social”, “Crise do Socialismo e Ofensiva Neoliberal” e
“Democracia e transição socialista”. Militante do PCB, foi
preso pela ditadura militar. Esteve exilado em Portugal durante
vários anos. É o Presidente do Instituto Caio Prado Jr. (ICP).
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1
NE: “Rumo à vitória” é um relatório ao CC. O relatório ao VI
Congresso é um outro documento, embora desenvolva, naturalmente, uma
linha idêntica. É neste relatório que são pela primeira vez
formulados os pontos da Revolução Democrática e Nacional (7 pontos
no Relatório, 8 no Programa aprovado pelo Congresso).
(O Diário.info - 23 de Janeiro de 2013)
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