É
uma opinião largamente difundida pelo sistema capitalista que a
educação seja algo de apolítico, ou, como se costuma
frequentemente dizer, seja «neutra». Esta afirmação reflecte uma
concepção de educação que prescinde dos elementos sociológicos
que a condicionam, e cria o conceito de «educação pela educação»,
naquilo que é um espaço social. Ao contrário, se considerarmos a
educação como determinada pela forma social dentro da qual se
constituem as suas finalidades, e na qual deve ser realizada, este
conceito acha-se imediatamente envolvido nos contrastes reais da
sociedade, ou seja, inserido no contexto da luta de classes. A
educação preenche um lugar insubstituível nas sociedades humanas,
na construção da sua história e na estruturação das relações
entre os homens. Por isso, a educação de massas é um dos mais
potentes instrumentos de controlo das mesmas, como também pode ser
um poderoso instrumento para a sua libertação. A edificação da
consciência humana está profundamente interligada com a educação
e a forma como se aprende e com o que se aprende. Assim, dominar
sistemas educativos no quadro actual do sistema capitalista é um
enorme passo para a consolidação do seu poder. As teses marxistas
fundamentais que dizem respeito à educação baseiam-se no seu
carácter de classe, ou seja, na ideia de que a educação é um
instrumento da classe dominante ao serviço dos seus interesses de
classe.
A
questão da educação constituída para perpetuar o sistema não se
prende só com a sua clara e cada vez maior elitização, que afasta
per
si os
filhos dos trabalhadores dos mais elevados graus de ensino. Este é
um dos factores fundamentais, mas a utilização da Educação pelo
capitalismo consegue ir mais longe. E a temática deste texto
prende-se sobretudo com os conteúdos escolares. Este é um tema que
pode ser muito abrangente, do ponto de vista do tipo de conteúdos e
da forma como podem ser incutidos. Apenas serão dados alguns
exemplos, dando preponderância aos manuais escolares, que são dos
elementos mais paradigmáticos de transmissão de conteúdos; assim
como ao ensino da História, tendo em conta o seu papel de relevo
para a formação de representações sociais e concepções do
mundo.
São
diversos os recursos didácticos disponíveis em cada escola para
apoio à prática lectiva dos docentes, mas nenhum deles conseguiu a
centralidade e o destaque no quotidiano escolar, que têm os manuais
escolares, ao longo de várias gerações. O manual escolar
transformou-se num dos recursos didácticos mais utilizados,
constituindo suporte ao trabalho do professor, delineando a natureza
da sua actividade, e tendo-se tornado, em alguns casos, um substituto
do próprio programa da disciplina. Corrêa (1),
refere-se aos manuais escolares como configurando um objecto em
circulação, sendo por isso veículos de circulação de ideias que
traduzem valores e comportamentos que alguns desejam que sejam
ensinados. E vai mais longe, falando mesmo numa política do manual
escolar, que visa a formação das massas populares com base em
conhecimentos que alguns acham que deveriam ou não ter acesso,
significando assim o controlo sobre os conteúdos escolares e, de
certo modo, o controlo sobre as práticas escolares e a produção
dos próprios manuais.
Uma
das questões que se coloca é a selectividade do conhecimento na
Escola. A forma como, entre todo um vasto campo possível de passado
e presente, se escolheram como importantes determinados significados
e práticas, enquanto outros são negligenciados e excluídos. E
muitas vezes, alguns desses significados são reinterpretados,
diluídos ou colocados em formas que fundamentam a cultura dominante.
Outra das questões é a estrutura constitutiva da maioria dos
currículos escolares centrar-se em torno do consenso. Poucas são as
tentativas sérias de lidar com o conflito, sendo que em vez disso
«investiga-se» uma ideologia do consenso que revela-se pouco
semelhante com os significados e contradições complexas que
envolvem o controlo e a organização da vida social. Deste modo, a
chamada «tradição selectiva» prescreve que não se ensine, ou irá
selectivamente reinterpretar a verdadeira história da classe
operária ou a história da mulher (por exemplo). A Escola, a
pretexto de ser neutra, não aborda muitas vezes questões que estão
na base da existência das classes dominadas: os salários, as
greves, o desemprego, as guerras coloniais. Também ocorre que
considerações sobre a justiça da vida social surjam
progressivamente despolitizadas e transformadas em enigmas
supostamente «neutros». Como disse Marx (1843), não se devem
aceitar as ilusões de uma época, as próprias abordagens das
participantes fundamentadas no senso comum sobre as actividades
intelectuais e programáticas, mas sim o investigador deve «situar»
tais actividades no campo mais vasto do conflito económico,
ideológico e social.
Para
Silva (2),
os discursos escolares sobre a história, estão «embrenhados» de
uma concepção de historicidade onde o principal nexo interpretativo
está nos encadeamentos cronológicos, sem que seja atribuída
qualquer importância aos intérpretes, às relações de poder que
sustentam o seu trabalho, e aos problemas construídos pelo processo
de conhecimento. Neste modo de conceber a aprendizagem não há
espaço para considerar o estudante como um agente capaz de propor
questões ou dispor conhecimento a partir da sua própria experiência
social. Stephanou (3),
aborda três características do conhecimento histórico contemplado
nos currículos, que se podem eventualmente aplicar aos currículos
portugueses: a) o facto de deter-se sobre factos passados, acentuando
a actuação de personagens especiais, cujas intenções, propósitos
e vontade são propulsores dos eventos históricos destacados nos
cenários das diferentes épocas. Aparece claramente uma concepção
de sujeito autónomo nestas formulações; b) o destaque dado aos
acontecimentos oficiais; c) a apresentação dos factos por meio da
sucessão cronológica, dispostos linearmente, convergindo para a
noção de evolução e de relações de causa-efeito.
Podemos
dizer que o carácter evolutivo da História faz parte de uma leitura
humana do real, e não de um dado concreto e objectivo. O social é
movimento, e essa noção constitui um critério fundamental da
explicação científica, uma vez que permite desnaturalizar os
fenómenos históricos e sociais, demonstrando que não são
imutáveis, e não se repetem (4).
Uma suposição básica parece ser a de que o conflito entre grupos
de pessoas é inerente e fundamentalmente mau, e que nos deveríamos
esforçar para o eliminar dentro do quadro estabelecido das
instituições, em vez de ver o conflito e a contradição como
«forças propulsoras» da sociedade, enquadrado na luta de classes.
Passemos
a alguns exemplos concretos. Olhando para o conjunto de manuais
escolares de História do 9.º ano, que mais foram utilizados entre
2005 e 2008, em escolas do distrito de Coimbra, podemos retirar
várias conclusões, somente analisando os conteúdos da abordagem ao
regime fascista em Portugal, à Guerra Colonial e à Revolução de
Abril, momentos tão relevantes na história do nosso país.
Comecemos
pelo tema da Guerra Colonial. Um dos exemplos mais flagrantes
reporta-se à contextualização da Guerra, nomeadamente a referência
aos seus antecedentes ou causas. O ponto de vista dos países
colonizados que é apresentado nesta categoria é na maioria das
vezes apenas a descrição do surgimento dos movimentos
independentistas. Ou mesmo os confrontos e ataques que surgiram nas
colónias. Pouco relevadas são as causas destes confrontos ou as
causas do surgimento de movimentos independentistas organizados.
Quase nenhum manual se refere às características das condições de
vida dos povos colonizados, à forma como foram explorados e quiseram
resistir, como razão para o desencadeamento dos confrontos. Tal
confirma-se igualmente quando analisamos a categoria das
consequências da Guerra Colonial. No que concerne às consequências
para os países colonizados, é claramente dada menos relevância aos
custos humanos dos países colonizados. Para além dos custos
humanos, em vários manuais, a única consequência que aparece
refere-se à construção de infra-estruturas nos países colonizados
que contribuiriam para o desenvolvimento das colónias. Poderíamos
dizer ainda, que o ónus do desencadeamento da Guerra Colonial
aparenta ser colocado várias vezes nos movimentos independentistas.
Vários manuais deixam claro que o início da guerra pertence aos
movimentos independentistas, talvez esquecendo que esta é o
desencadeamento de várias causas. É aqui patente a confirmação do
que dizia Apple (5),
quando se referia à selectividade do conhecimento na Escola, que se
reflecte nos currículos e manuais escolares. Ou seja, a forma como
se escolhem determinados significados e práticas, enquanto outros
são negligenciados e excluídos. A própria caracterização dos
movimentos independentistas reflecte a opção por um determinado
tipo: uma caracterização intimamente ligada a conceitos de carácter
mais agressivo – a maioria das vezes são caracterizados como
guerrilheiros, e mesmo como atacantes e rebeldes.
Quando
é analisada a caracterização de Portugal e das políticas do
regime fascista do ponto de vista económico, é de referir que é
dado destaque ao atraso económico e agrícola, mas são os Planos de
Fomento Económico que merecem um maior destaque na maioria dos
manuais. Pouco ou nada é referido acerca da política monopolista,
apenas surgindo uma componente num único manual escolar, que poderia
pressupor o monopolismo – «favorecimento dos grandes industriais e
banqueiros». Quando analisamos o chamado «marcelismo», do ponto de
vista económico, apenas são feitas referências, ainda que em
poucos manuais, a um incentivo à industrialização e abertura da
economia ao estrangeiro, referenciando apenas elementos positivos do
contributo deste governo para a economia.
Do
ponto de vista social, durante o governo de Salazar, é claramente
destacada a questão da emigração e do êxodo rural, em detrimento
da descrição de outros aspectos sociais. Vários aspectos sociais,
que são certamente factores deste fenómeno migratório, são na
maioria dos manuais apresentados genericamente como «más condições
de vida que levaram à emigração ou ao êxodo rural». Ou seja, os
manuais escolares referenciam várias componentes de aspectos sociais
– os baixos salários, a falta de instrução ou a falta de
condições de habitabilidade – mas estas referências são breves
e muito pouco descritas, seja no texto genérico, seja nos documentos
apresentados. A descrição das políticas sociais durante o
«marcelismo» resume-se à Reforma do Ensino e ao alargamento da
Providência Social. É evidente que dos aspectos mais referenciados
com conotação negativa, e descritos como factores de
descontentamento relativamente ao governo de Salazar, são os ataques
às liberdades democráticas, para além da Guerra Colonial. A
descrição das questões sociais é pouca, comparativamente a este
aspecto e aos aspectos da economia. No que diz respeito ao governo de
Marcelo Caetano, a generalidade dos manuais refere-se a aspectos de
abertura do regime do ponto de vista das liberdades democráticas,
sendo várias as componentes encontradas – «regresso de alguns
exilados políticos»; «abrandamento da censura»; «abrandamento da
repressão»; ou «organizações políticas foram legalizadas para
ir às urnas».
Num
enquadramento que se procura fazer do ponto de vista internacional,
nomeadamente falando das pressões da ONU ou das questões da II
Guerra Mundial, não deixa de ser questionável que apenas em dois
manuais escolares seja feita referência à relação de Salazar com
os regimes fascistas de Hitler e Mussolini.
A
caracterização da oposição ao regime está muito centralizada na
questão da participação nas eleições, como forma de protesto
contra regime. No entanto, acções concretas de combate ao regime
fascista que ocorreram e tiverem uma importância fundamental, como
as manifestações e greves de trabalhadores e estudantes, são muito
pouco mencionadas. Este facto pode fazer-nos colocar a hipótese que
Snyders (6) colocou:
a escola não aborda muitas vezes questões que estão na base da
existência das classes dominadas, como a luta geral dos
trabalhadores. Trata-se de qualquer modo de mais um exemplo de
selectividade. É também evidente a pessoalização da oposição.
Quando se fala na acção dos opositores existe uma tendência para
centrar a caracterização só em determinadas personagens (isto é
claramente evidente com o general Humberto Delgado). Confirma-se aqui
uma das características apontadas por vários autores acerca dos
programas e currículos de história: a centralização dos processos
históricos em «heróis», individuais. É evidente que com isto
está a ser negligenciado o papel do «colectivo» na maioria dos
avanços históricos das sociedades ao longo dos tempos.
A
caracterização do processo revolucionário do 25 de Abril, na
generalidade dos manuais escolares, reflecte claramente uma das
características apontadas por Stephanou e por Felgueiras (7)
aos
currículos e programas de História: a apresentação de factos por
sucessão cronológica, dispostos linearmente, que normalmente é
vista como um todo contínuo, mas que é várias vezes pobre em
conteúdo e na descrição. Relativamente ao desencadeamento da
Revolução, o enfoque é praticamente dado apenas ao golpe militar
protagonizado pelo MFA. Maioria dos manuais referem o apoio popular,
mas muito pouco descrevem o que foi este contributo fundamental e
determinante.
Relativamente
às consequências da Revolução, são focados os aspectos
essenciais das conquistas na maioria dos manuais, mas na generalidade
das vezes nada é aprofundado. Em todos os casos, nomeadamente nas
conquistas sociais e das liberdades democráticas, apenas é
designada a conquista, não sendo descrito mais nada, nem como a
conquista se efectivou na vida da população. No quadro da
importância que teve a Revolução de Abril para a consagração das
mais vastas liberdades democráticas e direitos, a referência nos
manuais escolares a estes direitos e à sua concretização é quase
nenhuma, sendo dada mais ênfase à instabilidade político-social no
pós- 25 de Abril, do que à descrição da efectivação dos
direitos consagrados.
Muitos
outros exemplos podiam ser dados neste plano, desde as descrições
feitas da União Soviética ou a descrição do que foi a II Guerra
Mundial e os seus principais actores, ou mesmo conteúdos de outras
disciplinas. Podíamos enveredar pelo conteúdo dos exames nacionais,
aos quais hoje a formação está «agarrada». Ou poderíamos entrar
nos conteúdos dados nas diversas áreas do Ensino Superior,
claramente perpetuando modelos únicos e que ajudam a perpetuar a
perspectiva do sistema.
Este
é um tema muito vasto e que nos dias de hoje continua a estar cada
vez mais presente na vida das escolas, de tal modo «entranhado» que
é preocupante pensarmos nas suas consequências. No sistema
capitalista, o uso da escola como aparelho ideológico e tentando de
forma «institucionalizada» moldar consciências e perspectivas do
mundo e da sociedade é uma arma poderosa que a classe dominante tem
nas mãos. A vida, as suas condições, o trabalho de
consciencialização feito, a organização da resistência, será
sem dúvida o maior contributo que se poderá dar para a alteração
desta situação. Num sistema diferente, na democracia avançada, no
socialismo, irá florescer a educação e os seus conteúdos como um
factor de libertação e emancipação do Homem, como impulsionadora
do progresso. E tal teria também um profundo cunho ideológico, sem
dúvida…, mas que estaria do outro lado da barricada.
Notas
(1)
Corrêa, Rosa Lydia Teixeira (2000), «O livro escolar como fonte de
pesquisa em História da Educação», Cadernos
CEDES, 20, n.º
52.
(2) Silva, Marcos A. da (org.) (1984), «Repensando a história», ANPUH/Marco Zero, São Paulo.
(3) Stephanou, Maria (1998), «Instaurando maneiras de Ser, Conhecer e Interpretar»,Revista Brasileira de história, 18, n.º 36,São Paulo.
(4) Idem.
(5) Apple, Michael W. (1999), «Ideologia e Currículo», Porto Editora, Porto.
(6) Snyders, George (1977), «Escola, Classes e lutas de classes», 1.ª ed., Moraes editores, São Paulo.
(7) Stephanou, Maria (1998), op. cit.
(2) Silva, Marcos A. da (org.) (1984), «Repensando a história», ANPUH/Marco Zero, São Paulo.
(3) Stephanou, Maria (1998), «Instaurando maneiras de Ser, Conhecer e Interpretar»,Revista Brasileira de história, 18, n.º 36,São Paulo.
(4) Idem.
(5) Apple, Michael W. (1999), «Ideologia e Currículo», Porto Editora, Porto.
(6) Snyders, George (1977), «Escola, Classes e lutas de classes», 1.ª ed., Moraes editores, São Paulo.
(7) Stephanou, Maria (1998), op. cit.
(Revista "O Militante", Nº 320 - Set/Out 2012)
Que hei-de dizer de amiga e camarada.Brilhante.Parabéns
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