Findava
o século passado quando foi lançada a primeira pedra de um novo
partido. Os seus fundadores, cientes da muita originalidade da
iniciativa, baptizaram o «movimento», não propriamente como um
partido na tradição portuguesa, com o nome de «Bloco de Esquerda».
No Manifesto de 1999, o lema foi «Começar de Novo», começar um
«novo movimento capaz de se constituir como alternativa na política
nacional e de se apresentar aos portugueses nas eleições», desse
último ano do milénio que expirava. Que coisa é o «Bloco»? Que
marcas transporta da sua pré-história gerada pelos velhos, e agora
extintos, pequenos partidos da extrema-esquerda, como o Partido
Socialista Revolucionário (PSR), a União Democrática Popular
(UDP), e de grupos como a Política XXI? Que boa nova trouxe para a
«esquerda» em Portugal? Como tipificar o seu discurso? Como
caracterizar a sua actuação política? Que esperar da sua marcha
aparente em quarto crescente?
A
zebra é o animal que leva por fora a sua radiografia interna
(Ramón
Gómez de la Serna)
A
presente análise toma partido, não poderia ser de outro modo. Não
há teoria política fora do terreno áspero das lutas ideológicas.
No bilhete de identidade do BE, definido pelos seus dirigentes
(apesar da pretensa informalidade, o «movimento» é liderado por
dirigentes, mesmo que por controlo remoto), é retratada a formação
política com um natural favorecimento, como a encarnação da
modernidade política, como a verdadeira «esquerda socialista»; e,
de modo implícito, como a suma inteligência dos novos tempos. Para
além destas verdades reveladas sondemos outras, veladas.
1-
O código genético bloquista e o 25 de Abril
Seria
pura mistificação fazer de conta que os fundadores do BE nasceram
politicamente no mesmo ano do seu novo partido. A sua carreira
política já ia longa quando fundaram o BE. No entanto, a datação
histórica tem na própria fundação o marco miliar. Diz o
carismático Francisco Louçã, falando do PCP, partido por si tido
como rival, por definição: «O PCP é um partido que foi fundado no
princípio do século passado e o BE foi fundado no último ano da
viragem do século. Penso que isso diz tudo.» (Sábado,
22/12/05). Para os dirigentes do BE o tempo começa a contar no ano I
da sua fundação… O tempo histórico, o passado de lutas, de
resistência, e o papel determinante do PCP na Revolução de Abril e
nas lutas que se seguiram, o papel do PCP como partido das classes
trabalhadoras, tudo isso está ultrapassado… Eis o sintoma
flagrante da falta de percepção histórica típica do «movimento»
de pretensos neófitos, cujo cronómetro só regista a hora nos seus
próprios pulsos.
A
ausência de uma filosofia da história transparece no estilo
auto-elogioso, validado para o Bloco e para os líderes. Em resposta
à pergunta do jornalista sobre onde está a «energia nova do BE»,
responde Louçã, com uma ironia egocêntrica típica: «Eu
represento essa energia nova.» Eis a versão tonificada do papel do
indivíduo na história-Recuemos a 1984, dez anos depois do 25 de
Abril. O mais destacado dirigente do BE deu então à estampa o
«Ensaio» para
uma revolução, 25 de Abril, 10 anos de lições» (Cadernos
Marxistas). Diz «ensaio», porque, na sua visão, a «revolução»
não foi além de uma «pré-revolução». A mais típica
inconsistência leva-o, no entanto, a considerar que as lutas e
experiências do PREC «colocaram o proletariado português na
vanguarda da revolução europeia» (p. 46). Vendo a classe operária
à luz da sua própria menoridade e insignificância organizativa,
considera que «o movimento operário independente ainda começava a
dar os primeiros passos» (p. 24), admitindo depois, no aceso das
lutas, a possibilidade da «emergência de uma direcção
revolucionária» (p. 46). Leia-se, de si próprios, in
statu nascendi.
O atraso irremediável em apanhar o comboio da história, compensa-se
de modo verbalmente revolucionário, numa crítica de «esquerda» ao
PCP.
A
Revolução
Democrática e Nacional,
etapa da revolução preconizada na estratégia delineada no VI
Congresso do Partido Comunista, em 1965 (Rumo
à Vitória,
A. Cunhal), que antecipa em muitos traços a Revolução de Abril, é
deturpada numa designada «revolução democrática nacional» (e uma
rotulada «democracia-nacional», p. 22), da qual Louçã elimina o
carácter antimonopolista, antilatifundiário, anticolonial e
anti-imperialista.
E diz ainda FL, na sua lição que se aplica a si próprio agora: «O que em contrapartida os revolucionários devem denunciar num balanço rigoroso é justamente a adaptação do PCP ao poder constituído, que procurava preservar as relações de produção (...).» (p. 30). Mudam-se os tempos e as verdades. O verbo incandescente e intolerante é agora a voz melíflua que anuncia a boa nova, que poderíamos assim parodiar: «Vinde, vinde! Qual a senha? Simples, basta dizer, esquerda moderna volver, adere ao bloco para crescer.»
Sendo FL economista, sobressai a sua pouca capacidade na perspectiva da economia política. Contrapõe as suas teses às do PCP, que teima em imitar ao contrário. Veja-se esta conclusão lapidar, no período em que as nacionalizações estão em causa, em meados da década de 80: «Uma desnacionalização global da economia é inviável e mais, inútil.» E depois: «O que em todo o caso a burguesia não será é a reconstituição dos grandes grupos como existiam antes do 25 de Abril.» (Ensaio para uma Revolução, p. 57). É flagrante o erro de previsão. Agora, o BE contenta-se, no que poderão chamar-se «relações de produção», com uma vaga alusão à não privatização da «água» e da «energia», como bens «públicos»… Acrescentemos poeticamente, e o mar, e o sol, e o céu?...
Em que condições viu a luz do dia o BE? Diz FL (J. Notícias, 29.01.05): «Nascemos de uma crise profunda no sistema político.» E adiante: «Todas as causas com as quais nos comprometemos fazem parte do nosso código genético e não abandonámos nenhuma.» Das duas uma, levando a metáfora do código à letra: ou o BE combina, por adição, os fragmentos de DNA da UDP, do PSR e de tutti quanti e é uma coisa híbrida, um «mosaico», ou a recombinação da informação genética adulterou de tal maneira o código, que a «coisa» é irreconhecível, uma verdadeira metamorfose num «bloco» bem cimentado. De qualquer modo, independentemente do código, o «fenótipo», a aparência do «movimento», permite leituras interessantes. Nos tempos idos, as principais forças constitutivas do Bloco aparentavam ser, sob forma de partidos, os verdadeiros «revolucionários proletários» (LCI/PSR), os verdadeiros «comunistas» (PCR/UDP), ou eram membros do Partido Comunista Português (Política XXI/Renovadores); agora, pretendem ser os verdadeiros e novos «socialistas», parlamentares, eleitorais, evolucionistas, numa palavra: reformistas. A mutação produziu uma viragem de 180 graus!
Em 2004, os dirigentes do Bloco editaram um novo Ensaio Geral, Passado e futuro do 25 de Abril (Ed. D. Quixote). Ajustar contas com a revolução, ou melhor o «ensaio» de revolução, porque ainda não tinham crescido para uma revolução de verdade. O historiador e líder do Bloco, Fernando Rosas, conclui enfaticamente que «a democracia política não só não se alcançou contra a revolução, como está geneticamente presa a ela» (p. 32), que «a revolução portuguesa de 1974/5 constitui a marca genética específica da democracia portuguesa». Uma pomposa verdade de La Palisse… Fernando Rosas dá, no seu ensaio, uma versão curiosa do «25 de Abril», na qual as forças populares e revolucionárias são subalternizadas, nomeadamente o PCP: «A revolução é fruto, antes de mais, da incapacidade histórica das classes dominantes (…)». E ao longo da sua prosa, no lugar do movimento de massas, da luta organizada das classes trabalhadoras, da luta de classes nas várias etapas da Revolução, vai tecer-se uma narrativa em que o historiador utiliza metáforas como «explosão», «vaga», «ondas de propagação», «panela de pressão», «desordem telúrica», «tensão», «vaga de choque», expressões para justificar de modo naturalista, sem teoria política, o processo histórico. A descrição põe a tónica no irracional, no espontâneo, como resultado do recalcamento do papel de vanguarda do PCP no processo revolucionário. Diga-se que já em «25 de Abril» o código genético político de FR era ferozmente anti-PCP. Daí não ser de estranhar que, mais adiante, F. Rosas pisque o olho à direita quando denuncia «que o alvo (do PCP na Revolução) é cumprir os objectivos da “Revolução Democrática Nacional” e avançar para um poder do tipo das democracias populares.» (p. 40). De novo a designação deturpada, grave imprecisão para um historiador, «democrática nacional», em vez de «democrática e nacional». Com uma no cravo e outra na ferradura, à boa maneira oportunista, diz numa boutade radical: «A revolução representou historicamente o mais profundo e ameaçador abalo sofrido por uma oligarquia que desde sempre, em Portugal, reinava incólume e segura.» E num golpe final de obscuro maquiavelismo, de quem faz sentenças acusatórias sobre a Revolução e contra o PCP, diz: «O que fez do 25 de Abril uma operação militar com o PCP, mas não do PCP.»
Luís
Fazenda, outro líder do Bloco, também tenta pôr a sua cabeça em
ordem na altura em que o «25 de Abril» fez trinta anos. No capítulo
do livro acima referido, que intitula As
voltas do PREC,
este antigo dirigente da UDP parece mais apostado em manter alguns
vínculos com o seu passado revolucionário. E diz, como quem tira
uma conclusão definitiva: «E o 25 de Abril foi mesmo uma revolução
democrática. Tal como se produziu não foi imaginada por ninguém»
(…) «A revolução esteve materialmente perto do socialismo.» L.
Fazenda está perplexo, apercebe-se pela leitura que faz de várias
obras de Álvaro Cunhal, que este «compreende melhor do que ninguém
as condições do derrube do fascismo nas circunstância concretas».
Mas logo a seguir, arrependido desta imperdoável concessão, vai
afirmar que «é escusado mascarar o 25 de Abril concreto com a
estratégia da Revolução Democrática e Nacional» e que «Cunhal
falhou na percepção da passagem da Revolução Democrática ao
socialismo». A falibilidade da infalibilidade do PCP!...Por
sua vez, os grupos esquerdistas são apostrofados por Fazenda, em
jeito de autocrítica, como radicais sectários e de uma ingénua
mediocridade.
Na
sua versão pretérita, como «radicalistas de fachada socialista»
(A. Cunhal, 1970), ou na sua versão póstuma, no «começar de novo»
do Bloco de Esquerda, o que sobressai nestas correntes é um
idealismo, uma compreensão insuficiente da história nos seus
avanços e recuos, na sua sinuosidade. No passado viram-se como os
arautos da revolução iminente, iluminados pela «ideia» a realizar
independentemente das condições sociais e históricas objectivas.
Agora, são uma espécie de «sociedade» por antecipação, uma nova
«ideia» original para um «socialismo» sem fronteiras,
«desclassificado», utópico, numa promoção reformista, quase
evangélica, de uma nova verdade.
É
a crise de alcance histórico, crise do capitalismo, crise do modo de
vida de camadas das classes médias, crise profundamente
contraditória, porque a par da grave derrota sofrida pelo socialismo
a nível mundial, após a restauração do capitalismo na Europa de
Leste e na ex-URSS.
2-
Uma ideologia de discurso liberal
O
estilo dominante do discurso bloquista é muito típico, alternando
enunciados categóricos e incisivos, com frase vagas, mas sedutoras,
até pela sua nebulosa imprecisão. Numa entrevista ao DN
(2.03.
08) F. Louçã responde desassombradamente assim: «Com certeza que
estamos à esquerda do Partido Comunista», nem mais. E, adiante,
sobre o socialismo do Bloco: «Gosto muito de fazer campanha junto
das pessoas, de procurar encontrar raízes
de radicalidade e de transformação política.
Acho que o socialismo
é isso mesmo, e é isso que o BE é,
como esquerda socialista.» Eis um exemplo paradigmático da forma
sofisticada e sofista de nada dizer, usando palavras bonitas.
Depois
da frase vazia, mas sonora, eis que vem outra vez a afirmação
política da originalidade do BE, pela voz de Louçã na mesma
entrevista do DN,
que assume forma de promoção da marca, do «produto»: «Nós
rejeitamos a ideia de um movimento popular tutelado por um partido.»
(…) «Nós entendemos que é preciso constituir uma esquerda
transformadora e emancipatória.» Parafraseando, parece óbvio que
como o Bloco é um «movimento», não é um «partido», o seu
movimento popular não é tutelado, porque é o próprio BE em
movimento. Fica muito mal ser «dono» de um movimento, a fotografia
para a história sai muito melhor com a atitude liberal de deixar
andar o movimento à solta, na espontaneidade criativa de indivíduos
cuja consciência é guiada pelo GPS do Bloco… A ideologia
baseia-se num discurso fluente e redundante onde vocábulos como
«novo», «moderno», «modernizador», «aberto», «plural»,
«social», «socialista», «popular», «alternativo», «radical»,
«democrático», «mudança», vão alternando sem grande
preocupação com o referente e a realidade.
No
livro de F. Louçã, Herança
Tricolor (1989),
obra prenunciadora do Bloco, radica a mesma preocupação de sempre
contra o PCP, ardilosamente montada: «Pelo contrário, o único
processo positivo teria que ser a
erosão do PCP,
criando espaços à esquerda, e esse é ainda e continuará a ser (…)
uma questão central para a construção de um Partido
Revolucionário(…)» E adverte: «Seria uma utopia reaccionária
pensar que é positivo ou que será rápido o inevitável efeito de
desgaste que a marginalidade
intelectual
e comunicacional
do
PCP e a sua crise política real, junto com as ofensivas ideológicas
burguesas introduzirão no movimento operário (p. 184).»
Discurso
premonitório! Criado o Bloco de Esquerda, quão verdadeira é a sua
promoção nos órgãos de informação, e como é verdadeira a
tentativa de marginalização «comunicacional do PCP», em contraste
com a diferença de importância e implantação nas classes
trabalhadoras. O discurso vago e com laivos intelectuais encanta os
menos atentos, que se deixam levar pelo palavreado promovido nos mass
media.
Detenhamos a nossa atenção voluntária neste discurso de Ana Drago e Jorge Costa, extraído do capítulo «Partir da Revolução a caminho do futuro», incluído no livro Passado e futuro do 25 de Abril: «Falar de “nova esquerda” é perceber que algo mudou, algo está a mudar, na ideia, no campo e nos actores da emancipação»(…). «No lugar onde se fabrica o antagonismo e o político, fazemos uma viagem de renovação de vontades, de reinvenção dos nomes e experimentação de novos caminhos.» (…) «Esses partidos modernos da era global, tanto mais necessários quando ainda não existem enquanto tal, concebem-se distintos mas próximos dos movimentos sociais e sabem que a soberania de transformação reside nestes, nas estruturas de contrapoder democrático de que se dotem»(…).
O discurso versa sobre a identidade, sobre a autodescrição recitativa e exaustiva do que será, do que é o próprio movimento. Dir-se-ia que se está a inventar verbalmente uma nova formação, mas que não se sabe bem dizer o que é. Então a reiterada referência à «coisa», que foge na malha do texto, numa fraseologia em que abundam os verbos mas faltam os complementos directos, muito movimento para um resultado incerto e indefinido. Um discurso em eco, em espelho.
Os
mesmos autores dizem isto: «Sem um movimento popular de largo
espectro, que imponha a partir de estruturas democráticas próprias
mudanças profundas na natureza do poder político, a chegada da
esquerda ao governo só atrasa o atraso.» (…) «Este partido traz
consciência» (…) «Sabemos que a “revolução” tem que ser
mais que um momento, é um processo de sentido democrático e de
capacitação para a autonomia que se vive e se espraia no social,
que se enraíza de quem fabrica o conflito e constrói a
alternativa.» A «revolução» com aspas já está também
contagiada pela mesma confusão indeterminada, que se vive e se
espraia na vagueza do substantivo «social». Afinal o que é que se
define e pretende? Que leitura da estrutura da sociedade, que base de
classes sociais, que perspectivas em relação à propriedade privada
dos grandes meios de produção e do capital financeiro? A sopa
eclética, a mistura de palavras não tem um fio condutor, a
ideologia é o próprio discurso, num solilóquio dialogado, que
torna a linguagem um fim quase desprovido de racionalidade, à boa
maneira pós-modernista, a liberdade individual da oração, o
discurso liberal, afirmação da individualidade criativa do falante,
cada um por si.
E
qual o mote da agenda política? Dizem Ana Drago e Jorge Costa, em
uníssono: «Todos juntos pela luta toda.» Faça-se justiça, cabe a
Louçã o primado da eloquência bloquista, com grande destaque para
a oratória parlamentar e o tempo de antena televisivo. Mas o
discurso escrito, particularmente em entrevista, perde o efeito da
retórica. Numa entrevista do DN (13.01.07), à pergunta, «O BE não
está demasiado dependente de Louçã?», responde assim: «Um
partido do futuro como quer ser o BE nunca
será um partido “coesionado” ideologicamente,
será um partido que encontra diversidade, porque tem de exprimir a
sociedade.» Foi assim em 2007. No DN também, em 16.06.06, o mesmo
Louçã, à pergunta, «O Bloco não tem grande consistência
ideológica?», responde: «Acho que é uma ficção. O Bloco
é um partido que tem ideias mais estruturadas na
esquerda portuguesa.» E remata logo de seguida que o «partido
comunista não tem ideologia». A especialidade do BE é dizer sempre
o melhor possível do BE, mesmo que tenha de se contradizer.
O
antagonismo contra o PCP, marca histórica dos antecedentes genéticos
do BE, tem continuidade na acção bloquista, é um dos seus eixos
tácticos e estratégicos. No Público
(28.02.02),
Louçã, «porta-voz»
(designação que prefere à de líder) do BE, sublinha as diferenças
entre o seu «movimento» e o PCP: «Há uma diferença essencial
entre o Bloco e o PCP; o Bloco entende que a visão moderna da
política é a que dá força e a capacidade
de ouvir opiniões diferentes.»
Estaríamos literalmente no mundo dos discursos: o porta-voz,
transporta a «voz», vox
populi,
até à Rua do Ouvidor, e ouve o eco.
Antes
de passarmos à parte seguinte detenhamo-nos no conceito de
«democracia» louçanista, vertido em Pensar
a Democracia à esquerda (Editorial
Inquérito, 1994), num texto que, por sinal, para dar o tom, se
intitula Oito
tons democráticos:
«O princípio constitutivo da democracia deve ser a horizontalidade
e não a verticalidade, a
apresentação e não a representação,
a política sendo a continuidade do exercício permanente da
soberania»(p. 74). Por conseguinte, antes uma apresentação na
horizontal de que uma representação na vertical…
3-
A maioridade parlamentar e o eleitoralismo
Desde
a sua fundação em 1999, o BE artilhou sempre as suas baterias
políticas para os actos eleitorais, sempre com a maior abertura
possível. Os congressos, que tomam na sua terminologia original a
designação de «convenções», antecedem quase sempre os actos
eleitorais. No manifesto inaugural, «Começar de Novo» (1999), este
propósito é claramente formulado: «O desafio que colocamos à
sociedade portuguesa é o da emergência de uma nova iniciativa
política. Formalmente, ela será
um partido para se poder apresentar às eleições.»
Na
primeira «Convenção» (29/30.01.00), o lema é «Novos tempos/Nova
esquerda», um slogan claramente propagandístico, que visa o terreno
eleitoral. O seu cartão de identidade (Debates, n.º 3, p. 31),
definido no ponto 5.1.2 sintetiza-se assim: «O
Bloco de Esquerda quer ser um novo movimento e não mais um
partido.»
Esta «lógica de movimento» visa claramente atrair pela inovação, procurando um consumidor para o novíssimo «produto», nunca visto, up«to»date, coisa do século XXI, empacotado com belas palavras, no que de modo muito geral poderemos chamar o mercado eleitoral, neste mundo em que tudo se vende. Aliás a própria informalidade é um chamariz: «(…)a experiência deste ano indica que o Bloco se pode continuar a desenvolver como movimento desde que todos e todas nele actuem em base individual, com igualdade de direitos e deveres.» (idem, p.31). Aqui encontramos o modelo nítido da clientela, em que a pessoa é chamada como «indivíduo», guindada de modo fictício a uma posição nivelada pelos líderes, que, de tão democráticos, comungam com as bases, tanto como os «aderentes» se «apresentam» ao vivo às cúpulas. A supressão simulada da distinção entre dirigentes e dirigidos, promessa sui generis do movimento, tem como modelo a condição formalmente reconhecida de um voto a cada cidadão. Como o Bloco é fundamentalmente uma formação eleitoralista, em que o fim principal é aumentar sempre os votos, está decifrado o seu verdadeiro código em acto. Só que, por limitações de casting, tal como para os outros partidos, os eleitos são uns tantos, as mesmas caras, sendo a maioria dos eleitores anónimos, tanto em Lisboa como em Freixo de Espada à Cinta.
O eleitoralismo é a imagem de marca do Bloco. A publicidade e a propaganda eleitoral os traços mais salientes no seu modus operandi. O estilo psicológico dos seus líderes pauta-se pela desenvoltura autoconvencida e o auto-elogio engraçado e pedante. É como se estivessem sempre a repetir até à saciedade, «nós é que somos os bons», «nós os inteligentes». O toque professoral e o tique de predicador inscrevem-se neste esquema. Veja-se o estilo do comentador do BE, Daniel de Oliveira, no Expresso, onde não perde pitada para zurzir no PCP, do alto do seu posto na imprensa burguesa.
As grandes palavras, as frases bombásticas, têm por destinatário o eleitor, clamando para o voto. Na III Convenção do Bloco, pré-eleitoral como sempre, o lema sublime é a frase, «Da política da crise à política do socialismo». As «propostas» (ao eleitor!) são o «pleno emprego», a «modernização democrática» (por oposição à chamada «modernização conservadora (!), a «reforma fiscal» («referência fundadora» do Bloco) e a «globalização alternativa» (resposta verbal à «globalização neoliberal»). Vê-se muito bem que os dirigentes escolheram o menu para satisfazer gostos diversificados, para pescar votos em várias classes, gerações e outras condições como o género e minorias.
Não
admira que, com a embalagem obtida em algum sucesso eleitoral, o
cartaz se tenha aprimorado, com slogans triunfalistas, vertidos em
enunciados como «Tempo de viragem», «Novo ciclo de política»,
«Uma esquerda de confiança», «Dez prioridades para cem dias de
mudança». Este último «programa», para as eleições
parlamentares de 2005, calendariza-se, pasme-se, «para
os primeiros cem dias do novo parlamento»,
como se fosse uma agenda de governo pré-formado. Independentemente
da justeza de algumas propostas, como a alteração da lei do aborto,
é óbvio que o cardápio do «contrato parlamentar» faz parte, no
essencial, de um propósito eleitoralista, baseado em temas concretos
para aliciar votos.
A
partir da V Convenção (2007), o Bloco parece querer dar um grande
salto em frente. Assim, em vez de repisar que é o «socialismo de
esquerda», passa a identificar-se como «a esquerda socialista». O
grande filão eleitoral, depois das desilusões do Governo de
Sócrates, estaria no eleitorado «socialista». Então, que melhor
remédio para o direitismo do PS do que a alternativa «esquerda
socialista»? Os bons propósitos bloquistas vão então combinar as
reivindicações sociais de largo espectro com bombásticas
«declarações de guerra» à «casta de administradores» e ao
«sistema social de corrupção». Radicalismo verbal, para dar o
tom… (Moção A da V Convenção, aprovada). Num documento
publicado pela Mesa Nacional do BE (Março de 2006), intitulado «O
rumo estratégico do Bloco», diz-se, sem rebuços: «A nossa
resposta é, por isso, que o campo de crescimento do Bloco é muito
grande, precisamente porque quer representar a maioria.»
O Partido que se chama «bloco» atingiu a maioridade, quer ser maior, quer ser o maior. Basta-lhe a propaganda mimética «socialista», na caça ao voto. Daí a lenga-lenga: «O Bloco quer transformar-se num grande partido político» (Louçã, JN, 9.05.03), «O Bloco quer destruir o actual mapa político português» (DN - Louçã, 16.08.07), «Quero conquistar a maioria» (Louçã,Expresso, 07.06), «Representamos uma alternativa ao governo socialista» (Louçã, Público, 21.07.05). Como se define o BE, pergunta o jornalista (Público, idem): «Socialista, socialista no século XXI», diz FL.
Num
momento de grande lucidez, o porta-voz do BE (Focus,
2007), diz querer ir ao fundo dos (seus) objectivos, de «criar uma
nova esquerda social e uma nova política para o país». E
acrescenta: «E isso não se faz com palavras, faz-se com a resposta
à grande exigência que é a criação de novas
redes sociais.»
Que são, diz: «Redes
que
faltam na imigração, nos mais explorados, nos call-centers, nos
trabalhadores precários, jovens licenciados desprezados; temos
que ter um movimento sindical que seja representativo e unitário.»
A
«rede» do Bloco, que pesca à rede, e que tem uma grande dor de
cotovelo por não ter na sociedade civil e no movimento sindical e
nas classes trabalhadoras a almejada equiparação ao PCP. Por isso
alimenta as suas ideias de grandeza na promoção parlamentarista, no
eleitoralismo e na conversa de jornal.
4
– O movimento é quase tudo
O
Bloco é versátil. Como diz o provérbio, quando falta o cão,
caça-se com um gato. Com efeito, como diz o líder Louçã (Focus,
18.04.06), o «Bloco é um movimento aberto, que se alarga.»(…)
«Nós queremos é incluir.» A grande abertura na óptica do Bloco
fez incluir na sua lista para vereador de Lisboa o inefável Sá
Fernandes, irmão do outro. E como o «independente» não se sente
dependente do BE, eis que surge a desavença intestina. Vem Luís
Fazenda, para salvar a honra do convento, e diz que o vereador «se
pôs a jeito» para o PS. Logo o irmão Ricardo, partidário do mano
Zé, opina no Público
contra
o «Desnorteamento do Bloco de Esquerda em Lisboa». E Fazenda (DN,
4.08.08) tem de se justificar pela reprimenda, justificando a não
complacência com o vereador em roda livre: afinal quem é que está
dependente, é o Bloco de Sá Fernandes ou Sá Fernandes do Bloco?
Coisas do Zé…
Como
o Bloco tem dificuldades nas autarquias, logo o coordenador do BE
para esse pelouro, Pedro Soares, também na mesma linha de engorda
eleitoral a qualquer preço, destina que «as candidaturas de
cidadãos são um modelo desejável em vários locais, até pela
participação cívica», etc. e tal (DN-
8.08.08). É só pôr o rótulo «BE» no produto «independente»,
para aumentar a estatística. É nessa mesma óptica de grande
objectiva que os «dissidentes» são recebidos de braços abertos,
depois de gastarem todos os cartuchos da dissidência no lugar de
proveniência.
Este
pragmatismo é o timbre do partido do Bloco. Já Luís Fazenda, no
trigésimo aniversário do «25 de Abril» (Passado e futuro, 2004),
havia consumado dolorosamente o seu revisionismo à moda de
Bernstein, («o movimento é tudo, o objectivo (estratégico) não é
nada»), quando afirma: «Os marxistas de hoje redescobrem a táctica
sem pressões estratégicas artificiais». Louçã, por sua vez, numa
esclarecedora entrevista ao Público
(21.07.05),
quando lhe perguntam se o BE defende a revolução ou se assume como
um movimento reformista responde assim: «É um debate de conceitos
que o BE não teve.» E, noutro passo da mesma entrevista, diz que o
BE não nasceu por uma fusão ideológica, mas «por
uma definição de agenda e de programa».
Será a agenda de antes da Ordem do Dia, em plenário, no Parlamento,
ou em quaisquer «passos perdidos» no areópago, com os media?
Como se viu, o programa é feito por medida, consoante a métrica da
urna eleitoral.
No
século passado, no ido ano de 1989, bicentenário da Revolução
Francesa, Louçã deu à estampa a sua Herança
Tricolor (
Ed. AJ). Fala aí das «raízes»: «a compreensão de que o lugar
da esquerda, contra a banalidade,
é na diferença; contra submissão, é na irreverência; contra a
força das coisas, é na energia da esperança.» (p. 28). Em 2005
(Sábado,
28.01.05), numa interessante entrevista a Miguel Esteves Cardoso, o
arguto escritor constata que Louçã só dissera coisas do». E o
líder, satisfeito, diz: «Fico muito contente por considerares as
propostas do Bloco de Esquerda uma questão de senso comum.»
É a agenda e o programa eleitoral da novíssima esquerda reformada e social-civilizada…Cada deputado no seu galho. As posições europeias do Bloco elevam a sua quota de civilidade e de boas maneiras europeístas. De que serve resistir quando os ventos de Oeste sopram tão fortes? Diz Miguel, parafraseando Marx, que «os resistentes só sabem criticar o mundo, quando o que é preciso é transformá-lo» (DN-20.06.05). Belo efeito, que prova a inteligência da navegação à vela, aproveitando os ventos de feição, sem grande preocupação com a rota. Diz Portas: «Estamos no século XXI, e não posso ser favorável a uma constituição sem processo constituinte.» Uma Europa à medida dos seus desejos, só a votos… Na crónica do DN-(29.10.05) MP encara mesmo «uma perspectiva de ruptura e refundação da Europa.» Ficou-lhe o optimismo histórico de antes, para os grandes voos até Bruxelas, ida e volta: «isto vai, com votos vai!»
Enquanto
se elevam as cotações «europeístas», sob controlo apertado do
Banco Central Europeu, a lírica de Miguel Portas descobre «o
abre-te sésamo» do paraíso europeu no «processo constituinte».
E, por isso, é que, a seu ver, «a resistência em um marco
nacional, sendo necessária, está condenada» (DN,
idem). Diz Miguel Portas que a alternativa «é uma Europa ética e
moral» (DN,
6.05.04). Já agora, cristã, há dois mil anos, apesar das invasões
de tantos bárbaros.
A
facilidade com que se dá a volta a Portugal a pé contra o
«desemprego», e a facilidade com que se volta à Europa a votar,
eis a expressão acabada do idealismo e da inanidade do «movimento».
Dizia Rosa Luxembourg, tão do agrado de alguns bloquistas nas
questões «imperiais», a propósito do oportunismo que fazia a
oração do «movimento é tudo, o objectivo não é nada»:
«Retornar às teorias socialistas anteriores a Marx, não é apenas
voltar ao b-a-ba, ao primeiro grande alfabeto do proletariado, é
balbuciar o catecismo anacrónico da burguesia.» (Reforma
e Revolução,
p. 118, Ed, Estampa).
As posições justas que o BE tem assumido
contra as guerras imperialistas e pela paz, e outras, em defesa de
minorias, não modificam o diagnóstico nem o prognóstico extraídos
nesta radiografia sumária.
(Jornal Avante - Nº1813, 28 de Agosto de 2008)
Sem comentários:
Enviar um comentário