Quando
o jornalista norte-americano John Reed escolheu o título «Dez dias
que abalaram o mundo» para o seu livro sobre a Revolução de
Outubro, fez jus a um dos principais aspectos dessa grande revolução:
o seu impacto internacional. Como não podia deixar de ser, a
Revolução de Outubro tem a marca do quadro nacional onde se gerou e
decorreu. Mas, quer na sua génese, quer nas enormes consequências
que teve para a História da Humanidade ao longo dos 90 anos desde
então decorridos, o que ressalta é sobretudo a dimensão
internacional da Revolução bolchevique.
As raízes internacionalistas da Revolução
Os
obreiros da Revolução de Outubro inscrevem-se na tradição
histórica do movimento operário que, desde muito cedo, compreendeu
e valorizou a natureza internacional da sua luta. Quando Marx e
Engels escreveram, em 1848, o Manifesto do Partido Comunista,
imortalizaram a consigna internacionalista «Proletários de todos os
países, uni-vos!». Essa visão internacionalista percorre a
contribuição teórica dos dois geniais dirigentes, quer nas
análises dos principais acontecimentos mundiais do seu tempo, quer
no recurso sistemático aos mais importantes escritos e produções
teóricas universais em todos os campos (filosófico, económico,
político, histórico, científico). Mas Marx e Engels sempre aliaram
a sua actividade teórica à batalha concreta para erguer a expressão
política do movimento operário, também no plano internacional.
Participaram directamente na criação da Associação Internacional
dos Trabalhadores em 1864, tendo Marx escrito os documentos
programáticos da Primeira Internacional. Lénine e os dirigentes
bolcheviques deram continuidade teórica e prática a esta tradição.
A
contribuição decisiva de Lénine para a compreensão da nova fase
imperialista do capitalismo, e das implicações políticas inerentes
à colonização da maioria da Humanidade pela globalização
imperialista que teve lugar na transição do século XIX para o
século XX, reflectiram-se na adaptação da consigna
internacionalista de Marx e Engels para «Proletários e povos
oprimidos de todo o mundo, uni-vos!».
A I Guerra Mundial e a Revolução de Outubro
A
globalização imperialista de há cem anos atrás, e as rivalidades
inter-imperialistas que gerou, estiveram na origem de uma das maiores
chacinas da História: a I Guerra Mundial de 1914-18. Foi no combate
ao militarismo e belicismo imperialistas que Lénine e os
bolcheviques se destacaram na defesa dos princípios
internacionalistas e revolucionários do marxismo. Num texto escrito
cerca de um ano após o início da guerra (1),
Lénine caracteriza a Grande Guerra imperialista: «durante decénios,
durante quase meio século, os governos e as classes dominantes da
Inglaterra, da França, da Alemanha, da Itália, da Áustria e da
Rússia praticaram uma política de pilhagem das colónias, de
opressão de nações estrangeiras, de repressão do movimento
operário. É precisamente essa política, e apenas essa, que é
continuada na actual guerra». E acrescenta: «Os socialistas de todo
o mundo declararam solenemente em 1912 em Basileia [no Congresso da
II Internacional] que consideravam a futura guerra europeia como uma
empresa “criminosa” e reaccionaríssima de todos os governos, que
deveria acelerar a derrocada do capitalismo, gerando inevitavelmente
a revolução contra ele. Começou a guerra, começou a crise. Em vez
da táctica revolucionária, a maioria dos partidos
sociais-democratas aplicaram uma táctica reaccionária, colocando-se
ao lado dos seus governos e da sua burguesia. Esta traição ao
socialismo significa a falência da II Internacional».
Foi
precisamente na fidelidade à «táctica revolucionária» e na
defesa dos interesses dos trabalhadores do mundo contra a barbárie
do grande capital de todas as nações, que Lénine e os bolcheviques
colocaram a questão do derrube do seu próprio governo. E quando,
após a revolução de Fevereiro de 1917 que derrubou o regime
czarista, o novo poder liberal-burguês manteve a Rússia como
beligerante na guerra imperialista, os revolucionários russos
mantiveram-se fiéis aos princípios e à «táctica revolucionária».
A vitória da Revolução de Outubro ficou assinalada, desde o
primeiro dia, pelo «Decreto sobre a Paz» em que o novo poder
soviético «propõe a todos os povos beligerantes e aos seus
governos que se comece imediatamente negociações sobre uma paz
justa e democrática [...] sem anexações (isto é, sem conquista de
terras estrangeiras, sem incorporação pela força de povos
estrangeiros) e sem contribuições» (2).
A
influência da Revolução de Outubro fez-se sentir desde logo no
plano internacional. O seu exemplo contribuiu para as revoltas de
soldados, marinheiros e trabalhadores alemães que conduziram, no
início de Novembro de 1918, à queda do Kaiser e ao armistício que
pôs fim à I Guerra Mundial. O sobressalto revolucionário fez-se
igualmente sentir em numerosos outros países europeus (Áustria,
Hungria, Itália) nos meses que se seguiram ao fim da guerra, sem no
entanto produzir a esperada revolução proletária mundial. Mas a
Revolução de Outubro representou um autêntico terramoto de
proporções planetárias, cujos efeitos profundos se fizeram sentir
ao longo de todo o século XX.
O impacto mundial da Revolução de Outubro
O impacto mundial da Revolução de Outubro
A
importância histórica de um acontecimento mede-se pela influência
e impacto que tem no decurso dos acontecimentos subsequentes. Neste
sentido, é impossível negar que a Revolução de Outubro é um dos
maiores acontecimentos na História da Humanidade. Não é possível
falar da História do século XX sem falar da Revolução de Outubro,
da União Soviética, do movimento comunista internacional e todas as
revoluções e processos de libertação nacional e social que se
inspiraram ou foram gerados, de forma mais ou menos directa, pela
Revolução bolchevique. Milhões de seres humanos das classes
outrora excluídas da intervenção política e social, tornaram-se
actores e obreiros do seu próprio futuro, graças ao impacto da
Revolução de Outubro.
Uma
das primeiras consequências da revolução foi a criação
generalizada de partidos comunistas e revolucionários que em
numerosos casos desempenharam e desempenham um papel decisivo na
história dos seus países. Mesmo sem referir o papel crucial da
União Soviética ao longo de toda a sua existência, basta referir
os nomes de alguns países (China, Alemanha, França, Itália, Índia,
Espanha, Indonésia, Grécia, Vietname, Cuba, todo o Leste europeu,
Portugal, Coreia, África do Sul, Iraque, etc.) para se tornar
evidente que é impossível escrever a História do século XX
omitindo a existência e acção dos comunistas.
A
revolução soviética e o surgimento do movimento comunista
internacional despertaram um profundo temor e ódio de classe no seio
das classes dominantes de todo o planeta. Apenas cinco anos após a
Revolução de Outubro, e no seguimento de importantes lutas da
classe operária italiana, que incluíram uma ocupação generalizada
das grandes fábricas do norte de Itália nos anos 1919-20, a
burguesia desse país recorreu a uma solução de violência e força
que haveria de lançar o planeta para a catástrofe: o fascismo. A
ascensão de Mussolini ao poder em 1922, e a feroz repressão que
lançou contra comunistas, socialistas, sindicatos e mesmo contra as
formas de poder liberal-burguesas (cuja profunda crise já não
garantia a sua dominação de classe) transformaram-se num «modelo»
que fascinou as classes dominantes (também em Portugal) durante as
décadas seguintes, sobretudo após a profundíssima crise económica
que varreu o mundo capitalista entre 1929 e 1935.
A
comparação entre a profunda crise económica, social e política do
capitalismo no início dos anos 30 – com o seu cortejo de
desemprego, miséria e fome – e os avanços impetuosos da União
Soviética, cujos planos quinquenais de desenvolvimento transformavam
(apesar de evidentes custos sociais e humanos) a pátria dos Sovietes
num moderno país industrializado, com importantes conquistas nos
campos da educação, saúde, cultura, reforçaram o prestígio da
Revolução de Outubro e dos comunistas a nível mundial.
Nos
anos 30, o papel de partidos comunistas foi decisivo para a criação
das Frentes Populares. O ódio de classe que essa experiência
despertou haveria de levar à traição da direita socialista
francesa, que enterrou a colaboração com os comunistas, abandonou a
República espanhola à sua sorte, e lançou a França no caminho da
mais feroz reacção anti-comunista, culminando no colaboracionismo
de grande parte da burguesia francesa com o invasor nazi, na
ilegalização e repressão do PCF e no regime fantoche de Vichy. Em
Espanha, a vitória eleitoral em 1936 da Frente Popular teve como
resposta das classes dirigentes espanholas o golpe militar de Franco.
Dispondo da maioria das Forças Armadas e do apoio militar de
Mussolini e Hitler, além do apoio da Igreja Católica, os golpistas
beneficiaram ainda doutro trunfo decisivo: a «neutralidade» das
democracias burguesas europeias, expressa na política de «não
intervenção» no embate frontal entre a democracia espanhola e o
fascismo. Tendo que escolher entre a legitimidade democrática e o
seu poder de classe, as classes dominantes não hesitaram. Apesar da
resistência heróica do povo espanhol e da ajuda militar da jovem
URSS, a República espanhola foi estrangulada.
Foi
na Alemanha que o fascismo conheceu a sua expressão mais violenta e
tenebrosa. À derrota na guerra inter-imperialista de 1914-18 e à
profundíssima crise económica e política, juntava-se o rápido
crescimento dos comunistas alemães (3).
O grande capital alemão apostou em Hitler e no nazismo como forma de
voltar a impor o seu controlo. A ascensão de Hitler foi encarada com
simpatia por grande parte das classes dirigentes europeias, que viam
nele um baluarte contra as classes trabalhadoras e a revolução
social. Expressão dessa simpatia foi o silêncio perante a
militarização da Renânia e a anexação da Áustria, mas sobretudo
a vergonhosa entrega da Checoslováquia a Hitler pelas «democracias
ocidentais» em Munique (4).
A política do «apaziguamento» de Hitler, não foi um «erro» de
quem queria «salvar a paz», mas um cálculo político do grande
capital europeu que sabia ser a União Soviética o principal alvo de
Hitler e não hesitou em sacrificar povos e países europeus aos
apetites nazis, numa tentativa de os encorajar a «resolver a questão
russa» (5).
As numerosas e sucessivas iniciativas da URSS para criar uma frente
antifascista com as democracias ocidentais foram sempre recusadas até
que Hitler optou por subjugar primeiro a França.
Coube
à URSS e aos comunistas o papel decisivo na derrota do
nazi-fascismo. É hoje fácil de esquecer que em finais de 1941 as
forças fascistas controlavam a totalidade da Europa continental,
desde a Península Ibérica até às portas de Moscovo. E foi na
frente soviética que se jogou o destino da II Guerra Mundial. Foi lá
que o nazismo concentrou mais de três quartos do seu poderio
militar. Foi a resistência heróica de Leninegrado, e as derrotas
infligidas pelo Exército Vermelho às tropas de Hitler em
Estalinegrado, Kursk e numerosas outras batalhas épicas, que
esmagaram o monstro nazi e salvaram a Humanidade. Ao papel decisivo
do exército, povo e Partido soviéticos tem de se juntar o papel
crucial que numerosos partidos comunistas desempenharam na
resistência armada ao fascismo e à ocupação dos seus países
pelas tropas invasoras (Grécia, Itália, França, Jugoslávia, entre
outros países europeus).
As
décadas de 30, 40 e 50 assinalaram também o crescimento de fortes
partidos comunistas em numerosos países colonizados ou
semi-colonizados, que desempenharam um papel decisivo nas lutas de
libertação nacional. Foi o caso, entre outros, da Índia, China,
Vietname, Coreia, Egipto, Iraque. Essa influência reforçou-se com o
enorme prestígio alcançado pela vitória da URSS na II Guerra
Mundial. A luta dos povos conduziu ao derrube dos impérios coloniais
europeus, na Ásia e mais tarde em África, e ao surgimento de
importantes realidades como o Movimento dos Países Não Alinhados. A
vaga libertadora da Revolução de Outubro alcançava, em meados do
século XX, um importante surto de libertação nacional, que nalguns
casos importantes, como foi o caso da grande Revolução Chinesa de
1949, traduziram-se também em libertação social.
A nova correlação de forças surgida da II Guerra Mundial, as transformações revolucionárias no Leste e os receios de novas revoluções sociais no Ocidente, permitiram alcançar importantes conquistas sociais e a construção do chamado Estado Social, mesmo em numerosos países capitalistas desenvolvidos. Em muitos países os comunistas alcançavam uma força política, sindical e eleitoral assinalável.
A nova correlação de forças surgida da II Guerra Mundial, as transformações revolucionárias no Leste e os receios de novas revoluções sociais no Ocidente, permitiram alcançar importantes conquistas sociais e a construção do chamado Estado Social, mesmo em numerosos países capitalistas desenvolvidos. Em muitos países os comunistas alcançavam uma força política, sindical e eleitoral assinalável.
A
reacção imperialista à nova situação mundial cedo se traduziu no
lançamento duma cruzada de guerra, subversão e ingerências
capitaneada pelo imperialismo dos EUA, a nova super-potência
indiscutível no campo capitalista. O imperdoável crime nuclear dos
EUA em Hiroxima e Nagasaqui não foi o último episódio da II Guerra
Mundial, mas um salto qualitativo na contra-ofensiva imperialista,
que incluiu as guerras na Grécia, Coreia, Vietname, Angola e
Nicarágua, ou os golpes militares na Indonésia e Chile. O papel dos
comunistas, e dos países socialistas na resistência a essa ofensiva
imperialista, foi da maior importância, e permitiu que novos
avanços, como a Revolução Cubana de 1959 e as numerosas vitórias
da década de 70, fossem possíveis.
Apesar
de todos os problemas, erros, divergências e desvios no projecto de
construção de socialismo, que haveriam de contribuir para a trágica
derrota da URSS e dos países socialistas do leste da Europa em
1989-91, a existência da União Soviética e do movimento comunista
internacional traduziu-se indiscutivelmente num factor de progresso
social, de paz e de avanço dos processos de libertação social e
nacional no planeta. O apoio da URSS e dos países socialistas às
lutas de resistência dos povos – como foi o caso do apoio à luta
dos povos português e das ex-colónias portuguesas contra o regime
colonial-fascista – foi sempre um factor com que o imperialismo
teve de contar. A confirmação desse facto deu-se, infelizmente, de
forma trágica. Com o desaparecimento da URSS e do socialismo
europeu, a correlação de forças mundial conheceu uma regressão
tremenda. O imperialismo passou à ofensiva global e procura
recuperar as posições perdidas em décadas anteriores através da
guerra permanente, da escalada de exploração e opressão, da
destruição da ordem jurídica internacional que emergiu da II
Guerra Mundial, da recolonização de países e regiões inteiras. A
luta dos trabalhadores e dos povos, a luta dos comunistas e das
forças progressistas mundiais decorre em condições muito mais
difíceis.
A
trágica realidade do nosso planeta, neste início de milénio,
confirma à saciedade a natureza criminosa, belicista, exploradora e
opressiva do imperialismo. O capitalismo dos nossos dias revela-se
cada vez mais parasitário e destrutivo. Representa uma ameaça para
a Humanidade e para o planeta. A resistência e luta por uma
alternativa são necessidades inelutáveis. É inevitável que, mais
cedo ou mais tarde, os trabalhadores e povos do mundo retomem de novo
o curso histórico iniciado pela Revolução de Outubro. Um novo
assalto aos céus é condição indispensável para que a Humanidade
seja poupada a uma descida ao inferno.
Notas
(1) O socialismo e a guerra, V. I. Lénine (1915), Obras Escolhidas em seis tomos, Tomo 2, Edições «Avante!», 1984, pág. 227.
(1) O socialismo e a guerra, V. I. Lénine (1915), Obras Escolhidas em seis tomos, Tomo 2, Edições «Avante!», 1984, pág. 227.
(2) Relatório
sobre a Paz, V. I. Lénine (1917), Obras Escolhidas em seis tomos,
Tomo 3, Edições «Avante!», 1984, pág. 340.
(3) Os
comunistas alemães subiram as suas votações nas várias eleições
realizadas em vésperas da tomada do poder pelos nazis, chegando a
alcançar quase 6 milhões de votos (17 %) e 100 deputados no
parlamento alemão em Novembro de 1932.
(4) Os
representantes do governo checo nem sequer foram admitidos na sala
onde Hitler, Mussolini, Chamberlain e Daladier concordaram em
retalhar a Checoslováquia para a entregar a Hitler, nos últimos
dias de Setembro de 1938.
(5) Expressão
usada pelo Primeiro Ministro britânico Chamberlain, falando perante
Hitler e Mussolini em Munique (ver The Rise and Fall of the Third
Reich, de William L. Shirer, Arrow, 1998, pág. 419).
(Revista"O Militante", Nº291 – Nov/Dez 2007)
Sem comentários:
Enviar um comentário