domingo, 17 de março de 2013

Artigos de Opinião | Jorge Cadima - A Influência Internacional da Revolução de Outubro


Quando o jornalista norte-americano John Reed escolheu o título «Dez dias que abalaram o mundo» para o seu livro sobre a Revolução de Outubro, fez jus a um dos principais aspectos dessa grande revolução: o seu impacto internacional. Como não podia deixar de ser, a Revolução de Outubro tem a marca do quadro nacional onde se gerou e decorreu. Mas, quer na sua génese, quer nas enormes consequências que teve para a História da Humanidade ao longo dos 90 anos desde então decorridos, o que ressalta é sobretudo a dimensão internacional da Revolução bolchevique.

As raízes internacionalistas da Revolução

Os obreiros da Revolução de Outubro inscrevem-se na tradição histórica do movimento operário que, desde muito cedo, compreendeu e valorizou a natureza internacional da sua luta. Quando Marx e Engels escreveram, em 1848, o Manifesto do Partido Comunista, imortalizaram a consigna internacionalista «Proletários de todos os países, uni-vos!». Essa visão internacionalista percorre a contribuição teórica dos dois geniais dirigentes, quer nas análises dos principais acontecimentos mundiais do seu tempo, quer no recurso sistemático aos mais importantes escritos e produções teóricas universais em todos os campos (filosófico, económico, político, histórico, científico). Mas Marx e Engels sempre aliaram a sua actividade teórica à batalha concreta para erguer a expressão política do movimento operário, também no plano internacional. Participaram directamente na criação da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1864, tendo Marx escrito os documentos programáticos da Primeira Internacional. Lénine e os dirigentes bolcheviques deram continuidade teórica e prática a esta tradição.

A contribuição decisiva de Lénine para a compreensão da nova fase imperialista do capitalismo, e das implicações políticas inerentes à colonização da maioria da Humanidade pela globalização imperialista que teve lugar na transição do século XIX para o século XX, reflectiram-se na adaptação da consigna internacionalista de Marx e Engels para «Proletários e povos oprimidos de todo o mundo, uni-vos!».

A I Guerra Mundial e a Revolução de Outubro

A globalização imperialista de há cem anos atrás, e as rivalidades inter-imperialistas que gerou, estiveram na origem de uma das maiores chacinas da História: a I Guerra Mundial de 1914-18. Foi no combate ao militarismo e belicismo imperialistas que Lénine e os bolcheviques se destacaram na defesa dos princípios internacionalistas e revolucionários do marxismo. Num texto escrito cerca de um ano após o início da guerra (1), Lénine caracteriza a Grande Guerra imperialista: «durante decénios, durante quase meio século, os governos e as classes dominantes da Inglaterra, da França, da Alemanha, da Itália, da Áustria e da Rússia praticaram uma política de pilhagem das colónias, de opressão de nações estrangeiras, de repressão do movimento operário. É precisamente essa política, e apenas essa, que é continuada na actual guerra». E acrescenta: «Os socialistas de todo o mundo declararam solenemente em 1912 em Basileia [no Congresso da II Internacional] que consideravam a futura guerra europeia como uma empresa “criminosa” e reaccionaríssima de todos os governos, que deveria acelerar a derrocada do capitalismo, gerando inevitavelmente a revolução contra ele. Começou a guerra, começou a crise. Em vez da táctica revolucionária, a maioria dos partidos sociais-democratas aplicaram uma táctica reaccionária, colocando-se ao lado dos seus governos e da sua burguesia. Esta traição ao socialismo significa a falência da II Internacional».

Foi precisamente na fidelidade à «táctica revolucionária» e na defesa dos interesses dos trabalhadores do mundo contra a barbárie do grande capital de todas as nações, que Lénine e os bolcheviques colocaram a questão do derrube do seu próprio governo. E quando, após a revolução de Fevereiro de 1917 que derrubou o regime czarista, o novo poder liberal-burguês manteve a Rússia como beligerante na guerra imperialista, os revolucionários russos mantiveram-se fiéis aos princípios e à «táctica revolucionária». A vitória da Revolução de Outubro ficou assinalada, desde o primeiro dia, pelo «Decreto sobre a Paz» em que o novo poder soviético «propõe a todos os povos beligerantes e aos seus governos que se comece imediatamente negociações sobre uma paz justa e democrática [...] sem anexações (isto é, sem conquista de terras estrangeiras, sem incorporação pela força de povos estrangeiros) e sem contribuições» (2).

A influência da Revolução de Outubro fez-se sentir desde logo no plano internacional. O seu exemplo contribuiu para as revoltas de soldados, marinheiros e trabalhadores alemães que conduziram, no início de Novembro de 1918, à queda do Kaiser e ao armistício que pôs fim à I Guerra Mundial. O sobressalto revolucionário fez-se igualmente sentir em numerosos outros países europeus (Áustria, Hungria, Itália) nos meses que se seguiram ao fim da guerra, sem no entanto produzir a esperada revolução proletária mundial. Mas a Revolução de Outubro representou um autêntico terramoto de proporções planetárias, cujos efeitos profundos se fizeram sentir ao longo de todo o século XX.
O impacto mundial da Revolução de Outubro

A importância histórica de um acontecimento mede-se pela influência e impacto que tem no decurso dos acontecimentos subsequentes. Neste sentido, é impossível negar que a Revolução de Outubro é um dos maiores acontecimentos na História da Humanidade. Não é possível falar da História do século XX sem falar da Revolução de Outubro, da União Soviética, do movimento comunista internacional e todas as revoluções e processos de libertação nacional e social que se inspiraram ou foram gerados, de forma mais ou menos directa, pela Revolução bolchevique. Milhões de seres humanos das classes outrora excluídas da intervenção política e social, tornaram-se actores e obreiros do seu próprio futuro, graças ao impacto da Revolução de Outubro.

Uma das primeiras consequências da revolução foi a criação generalizada de partidos comunistas e revolucionários que em numerosos casos desempenharam e desempenham um papel decisivo na história dos seus países. Mesmo sem referir o papel crucial da União Soviética ao longo de toda a sua existência, basta referir os nomes de alguns países (China, Alemanha, França, Itália, Índia, Espanha, Indonésia, Grécia, Vietname, Cuba, todo o Leste europeu, Portugal, Coreia, África do Sul, Iraque, etc.) para se tornar evidente que é impossível escrever a História do século XX omitindo a existência e acção dos comunistas.

A revolução soviética e o surgimento do movimento comunista internacional despertaram um profundo temor e ódio de classe no seio das classes dominantes de todo o planeta. Apenas cinco anos após a Revolução de Outubro, e no seguimento de importantes lutas da classe operária italiana, que incluíram uma ocupação generalizada das grandes fábricas do norte de Itália nos anos 1919-20, a burguesia desse país recorreu a uma solução de violência e força que haveria de lançar o planeta para a catástrofe: o fascismo. A ascensão de Mussolini ao poder em 1922, e a feroz repressão que lançou contra comunistas, socialistas, sindicatos e mesmo contra as formas de poder liberal-burguesas (cuja profunda crise já não garantia a sua dominação de classe) transformaram-se num «modelo» que fascinou as classes dominantes (também em Portugal) durante as décadas seguintes, sobretudo após a profundíssima crise económica que varreu o mundo capitalista entre 1929 e 1935.

A comparação entre a profunda crise económica, social e política do capitalismo no início dos anos 30 – com o seu cortejo de desemprego, miséria e fome – e os avanços impetuosos da União Soviética, cujos planos quinquenais de desenvolvimento transformavam (apesar de evidentes custos sociais e humanos) a pátria dos Sovietes num moderno país industrializado, com importantes conquistas nos campos da educação, saúde, cultura, reforçaram o prestígio da Revolução de Outubro e dos comunistas a nível mundial.

Nos anos 30, o papel de partidos comunistas foi decisivo para a criação das Frentes Populares. O ódio de classe que essa experiência despertou haveria de levar à traição da direita socialista francesa, que enterrou a colaboração com os comunistas, abandonou a República espanhola à sua sorte, e lançou a França no caminho da mais feroz reacção anti-comunista, culminando no colaboracionismo de grande parte da burguesia francesa com o invasor nazi, na ilegalização e repressão do PCF e no regime fantoche de Vichy. Em Espanha, a vitória eleitoral em 1936 da Frente Popular teve como resposta das classes dirigentes espanholas o golpe militar de Franco. Dispondo da maioria das Forças Armadas e do apoio militar de Mussolini e Hitler, além do apoio da Igreja Católica, os golpistas beneficiaram ainda doutro trunfo decisivo: a «neutralidade» das democracias burguesas europeias, expressa na política de «não intervenção» no embate frontal entre a democracia espanhola e o fascismo. Tendo que escolher entre a legitimidade democrática e o seu poder de classe, as classes dominantes não hesitaram. Apesar da resistência heróica do povo espanhol e da ajuda militar da jovem URSS, a República espanhola foi estrangulada.

Foi na Alemanha que o fascismo conheceu a sua expressão mais violenta e tenebrosa. À derrota na guerra inter-imperialista de 1914-18 e à profundíssima crise económica e política, juntava-se o rápido crescimento dos comunistas alemães (3). O grande capital alemão apostou em Hitler e no nazismo como forma de voltar a impor o seu controlo. A ascensão de Hitler foi encarada com simpatia por grande parte das classes dirigentes europeias, que viam nele um baluarte contra as classes trabalhadoras e a revolução social. Expressão dessa simpatia foi o silêncio perante a militarização da Renânia e a anexação da Áustria, mas sobretudo a vergonhosa entrega da Checoslováquia a Hitler pelas «democracias ocidentais» em Munique (4). A política do «apaziguamento» de Hitler, não foi um «erro» de quem queria «salvar a paz», mas um cálculo político do grande capital europeu que sabia ser a União Soviética o principal alvo de Hitler e não hesitou em sacrificar povos e países europeus aos apetites nazis, numa tentativa de os encorajar a «resolver a questão russa» (5). As numerosas e sucessivas iniciativas da URSS para criar uma frente antifascista com as democracias ocidentais foram sempre recusadas até que Hitler optou por subjugar primeiro a França.

Coube à URSS e aos comunistas o papel decisivo na derrota do nazi-fascismo. É hoje fácil de esquecer que em finais de 1941 as forças fascistas controlavam a totalidade da Europa continental, desde a Península Ibérica até às portas de Moscovo. E foi na frente soviética que se jogou o destino da II Guerra Mundial. Foi lá que o nazismo concentrou mais de três quartos do seu poderio militar. Foi a resistência heróica de Leninegrado, e as derrotas infligidas pelo Exército Vermelho às tropas de Hitler em Estalinegrado, Kursk e numerosas outras batalhas épicas, que esmagaram o monstro nazi e salvaram a Humanidade. Ao papel decisivo do exército, povo e Partido soviéticos tem de se juntar o papel crucial que numerosos partidos comunistas desempenharam na resistência armada ao fascismo e à ocupação dos seus países pelas tropas invasoras (Grécia, Itália, França, Jugoslávia, entre outros países europeus).

As décadas de 30, 40 e 50 assinalaram também o crescimento de fortes partidos comunistas em numerosos países colonizados ou semi-colonizados, que desempenharam um papel decisivo nas lutas de libertação nacional. Foi o caso, entre outros, da Índia, China, Vietname, Coreia, Egipto, Iraque. Essa influência reforçou-se com o enorme prestígio alcançado pela vitória da URSS na II Guerra Mundial. A luta dos povos conduziu ao derrube dos impérios coloniais europeus, na Ásia e mais tarde em África, e ao surgimento de importantes realidades como o Movimento dos Países Não Alinhados. A vaga libertadora da Revolução de Outubro alcançava, em meados do século XX, um importante surto de libertação nacional, que nalguns casos importantes, como foi o caso da grande Revolução Chinesa de 1949, traduziram-se também em libertação social.

A nova correlação de forças surgida da II Guerra Mundial, as transformações revolucionárias no Leste e os receios de novas revoluções sociais no Ocidente, permitiram alcançar importantes conquistas sociais e a construção do chamado Estado Social, mesmo em numerosos países capitalistas desenvolvidos. Em muitos países os comunistas alcançavam uma força política, sindical e eleitoral assinalável.

A reacção imperialista à nova situação mundial cedo se traduziu no lançamento duma cruzada de guerra, subversão e ingerências capitaneada pelo imperialismo dos EUA, a nova super-potência indiscutível no campo capitalista. O imperdoável crime nuclear dos EUA em Hiroxima e Nagasaqui não foi o último episódio da II Guerra Mundial, mas um salto qualitativo na contra-ofensiva imperialista, que incluiu as guerras na Grécia, Coreia, Vietname, Angola e Nicarágua, ou os golpes militares na Indonésia e Chile. O papel dos comunistas, e dos países socialistas na resistência a essa ofensiva imperialista, foi da maior importância, e permitiu que novos avanços, como a Revolução Cubana de 1959 e as numerosas vitórias da década de 70, fossem possíveis.

Apesar de todos os problemas, erros, divergências e desvios no projecto de construção de socialismo, que haveriam de contribuir para a trágica derrota da URSS e dos países socialistas do leste da Europa em 1989-91, a existência da União Soviética e do movimento comunista internacional traduziu-se indiscutivelmente num factor de progresso social, de paz e de avanço dos processos de libertação social e nacional no planeta. O apoio da URSS e dos países socialistas às lutas de resistência dos povos – como foi o caso do apoio à luta dos povos português e das ex-colónias portuguesas contra o regime colonial-fascista – foi sempre um factor com que o imperialismo teve de contar. A confirmação desse facto deu-se, infelizmente, de forma trágica. Com o desaparecimento da URSS e do socialismo europeu, a correlação de forças mundial conheceu uma regressão tremenda. O imperialismo passou à ofensiva global e procura recuperar as posições perdidas em décadas anteriores através da guerra permanente, da escalada de exploração e opressão, da destruição da ordem jurídica internacional que emergiu da II Guerra Mundial, da recolonização de países e regiões inteiras. A luta dos trabalhadores e dos povos, a luta dos comunistas e das forças progressistas mundiais decorre em condições muito mais difíceis.

A trágica realidade do nosso planeta, neste início de milénio, confirma à saciedade a natureza criminosa, belicista, exploradora e opressiva do imperialismo. O capitalismo dos nossos dias revela-se cada vez mais parasitário e destrutivo. Representa uma ameaça para a Humanidade e para o planeta. A resistência e luta por uma alternativa são necessidades inelutáveis. É inevitável que, mais cedo ou mais tarde, os trabalhadores e povos do mundo retomem de novo o curso histórico iniciado pela Revolução de Outubro. Um novo assalto aos céus é condição indispensável para que a Humanidade seja poupada a uma descida ao inferno.


Notas

(1) O socialismo e a guerra, V. I. Lénine (1915), Obras Escolhidas em seis tomos, Tomo 2, Edições «Avante!», 1984, pág. 227.

(2) Relatório sobre a Paz, V. I. Lénine (1917), Obras Escolhidas em seis tomos, Tomo 3, Edições «Avante!», 1984, pág. 340.

(3) Os comunistas alemães subiram as suas votações nas várias eleições realizadas em vésperas da tomada do poder pelos nazis, chegando a alcançar quase 6 milhões de votos (17 %) e 100 deputados no parlamento alemão em Novembro de 1932.

(4) Os representantes do governo checo nem sequer foram admitidos na sala onde Hitler, Mussolini, Chamberlain e Daladier concordaram em retalhar a Checoslováquia para a entregar a Hitler, nos últimos dias de Setembro de 1938.

(5) Expressão usada pelo Primeiro Ministro britânico Chamberlain, falando perante Hitler e Mussolini em Munique (ver The Rise and Fall of the Third Reich, de William L. Shirer, Arrow, 1998, pág. 419).


(Revista"O Militante", Nº291 – Nov/Dez 2007)

Sem comentários:

Enviar um comentário